domingo, 29 de outubro de 2006

Os mortos


 

Designado pelo vice-rei do Peru para fundar uma cidade, Juan Núñez de Prado, com duzentos homens, percorreu um extenso itinerário durante o qual enfrentou discórdias e lutas e toda sorte de desventuras. Carlos Droguett, sem se afastar da história oficial, relatada nas Crônicas da Conquista, refaz esse caminho em El hombre que trasladaba las ciudades (Barcelona, Noguer, 1973), um dos mais belos e perfeitos romances latino-americanos. No segundo capítulo, o capitão e seus homens avançam no Continente, em pós de um sítio para assentar, pela segunda vez, a cidade.

 

            Nos caminhos percorridos, nos trabalhos pra traçar ruas, construir casas e igrejas, cavar os fossos de defesa e as muralhas da cidade, aconteceram enfermidades e teimosias que não constavam dos planos de Juan Núñez de Prado e de seus capitães, levando-os, então, a outras decisões: não levar, ao partir em busca de um novo assento para a cidade, nem os doentes (Deus há de preferir os sadios), nem os que a eles se opunham (se eles se rebelarem eu os matarei, diz o capitão). Diante das portas fechadas, ele indaga por que seus donos não as abrem. Porque estão doentes e febris lhe responde um de seus capitães e, então ele pergunta se irão levar com eles mais gente podre. E os que estavam afundados nas camas, agarrados nos lençóis, cheios de transpiração e medo, queixando-se suavemente se constituem uma tentação, um convite para serem vítimas da crueldade. Como fazer, pergunta, ainda, Guevara, para rebentar suas portas e janelas, para desmontar as paredes se elas abrigam os pobres infelizes que tremem e suam nas suas roupas. Porque aos soldados que as guardavam  bastaria um gesto, o menor sinal para as demolirem, tanto quanto seus donos. São muitos, muito mais do que deveriam ser e entre os capitães se joga o seu destino. Porque os que ordenam se oferecem razões: eles foram fracos e a fraqueza é um pecado que se castiga com a morte, a forca e o garrote são mortes divinas [...] Também se apóiam em leis: primeiro há um julgamento, se enumeram as acusações, as testemunhas depõem e correm os prazos para apelação e a forca está pronta. Leis que, na verdade, são seguidas apenas pelos que as enunciam: enforcaremos os prisioneiros diz Guevara; vamos matar todos, opina Vásquez. Mortes que a narrativa irá eludir, estabelecendo zonas de sombra. Quando o padre Cedrón encontra os prisioneiros amarrados e querendo defendê-los se lança contra o capitão Vásquez numa luta corporal que o faz esquecer a batina, o capitão Guevara, sentado no chão queria dizer algo mas soaram atrás dele as escadas da forca e escutou o barulho dos corpos que rolavam para a terra. E o padre Cedrón, suado e com as vestes rasgadas na luta, olhou para o céu onde nuvens se amontoavam e escutou o vai e vem e na penumbra as enxergou se movendo, um tanto pesadas no seu movimento. Os soldados retiravam as escadas da forca.

             Esse pudor narrativo anunciando uma ação que não será descrita, mas mencionada depois de ter acontecido ou sugere o ato criminoso pela descrição dos gestos sem que o verbo matar apareça explícito, estará presente, também, nos episódios em que Juan Núñez de Prado mata dois soldados por temer outras certezas que não as suas: [...] tens medo e te agarras a uma adaga, te agarras a teu medo para não cair no abismo[...] lhe diz um deles de perfil puro e jovem. O capitão cortou as cordas que o mantinham amarrado e colocando a sua mão na faixa que lhe apertava a cintura a afundou aí, sabendo o que fazia e lamentando[...]. E lhe diz outro donairoso e jovem, de traços finos, audazes e ingênuos: tuas palavras são de um homem que sente medo e por isso eu me dirijo à prisão agora para marcar tua derrota. Era um prisioneiro e estava atado pelo pescoço. O capitão responde não estou derrotado, agarra a corda e o faz levantar-se pois estava caído, chorando de fúria e rancor e levanta a mão em que tinha a adaga para cortar as cordas. O soldado soluçou de surpresa, levantou os braços adormecidos e olhou para ele com um desorbitado gesto de tímida alegria e ressurreição [...]. Juan Núñez de Prado desceu o braço para obrigá-lo a se afundar na terra e, dobrando os joelhos, caiu sobre ele. Sua mão se apagou no seu peito, sentiu-a molhada e soltou os dedos.

            Os dois soldados ficaram por terra. O ar continuou parado, persistiu o vôo dos pássaros e os ruídos de conversas e trabalhos indicavam que tudo continuava a ser como antes.

domingo, 22 de outubro de 2006

Os maltratados


Designado pelo vice-rei do Peru para fundar uma cidade, Juan Núñez de Prado, com duzentos homens, percorreu um extenso itinerário durante o qual enfrentou discórdias e lutas e toda sorte de desventuras. Carlos Droguett, sem se afastar da história oficial, relatada nas Crônicas da Conquista, refaz esse caminho em El hombre que trasladaba las ciudades (Barcelona, Noguer, 1973), um dos mais perfeitos romances latino-americanos. No segundo capítulo, o capitão e seus homens avançam no Continente, em pós de um sítio para assentar, pela segunda vez, a cidade.

 

            [...] passavam ginetes, os olhavam com naturalidade, se detinham a cumprimentá-los como se nada de estranho ou extravagante estivesse ocorrendo e aqueles homens atados e ensangüentados transcorressem dentro da realidade normal e franca das coisas [...]. E, assim, tudo se passa em meio à indiferença e o alheamento dos que seguem Juan Núñez de Prado e seus capitães. Eles querem mudar a cidade de lugar e encontram razões para isso. Como encontram aquelas para justificar as violências que cometem contra os que desejam ficar. Para Juan Núñez de Prado, eles são melancólicos e se apegam à terra, choram olhando os jardins que os cavalos pisam, se agarram nas laranjeiras e gritam e vociferam que jamais os abandonarão. E, por isso, são maltratados e feridos pelos que, a sua semelhança, pertencem à idêntica massa anônima que não possui quaisquer direitos. Carlos Droguett, no relato que faz dos caminhos percorridos por esses aventureiros espanhóis com seus quinhentos índios submissos, dos sofrimentos e ilusões, que os conduzem, o pontilha de pequenas ações realizadas sob a égide dos verbos maltratar e bater cujos sujeitos são os soldados que recebem ordens e as obedecem e cujos objetos são os soldados que tentam desobedecer aos delírios dos capitães. Pequenas sentenças se imiscuem entre as que indicam as ações de construir e destruir a cidade, entre as que se detém sobre um aspecto do cenário e revelam agressões: um soldado vai caminhando sem olhar para ninguém. Adivinha que se parar será, outra vez, movido a golpes e empurrões. Ao perceber que não batem no soldado que está perto dele, sente esperança mas, logo, é esbofeteado e se desmorona no chão. Muitos passam perto, aflitos e ensangüentados e, dentre eles, a voz do que manchado de sangue, se rebela, grita contra Cristo e contra os maus cristãos. Uns, embora igualmente golpeados e cheios de sangue, se olham com desprezo e ameaça ou têm o rosto cheio de machucaduras; outros, são surpreendidos ao levantar o martelo para bater um último prego na casa que era sua como o que foi esbofeteado sem que nada lhe dissessem, teve o rosto atingido pelo arcabuz, os ossos quebrados e adivinha que está sangrando; ou o que escutando gritos de ódio e desespero na casa ao lado quando encarou os soldados, que o mantinham com os braços presos, para perguntar, sentiu no rosto a bofetada e o sangue nos lábios e outra bofetada que o lançou para o lado. Há, igualmente, o que estava caído por terra, a cabeça sobre uma rocha e o peito ensangüentado, o uniforme despedaçado e o borzeguim roto.

            Também, acontecem embates entre um soldado e Juan Núñez de Prado. Num episodio, ele vê o soldado caminhar, sozinho, entre os móveis e as roupas espalhadas. Lança o cavalo na sua direção e o joga de bruços no chão, como uma trouxa de roupa suja. Quando o soldado levanta as mãos atadas, querendo mostrar o que lhe tinham feito, se dá conta que tinham lhe batido muito. Em outro episódio, um soldado coxo levanta a muleta para mostrá-la ao capitão num gesto de audaz provocação ou como uma carta de salvação ou uma pobre pueril desculpa [...]. Porque o capitão decretava nem coxos, nem feridos, nem velhos, nem moribundos seriam levados para o novo  assento da cidade e se lançara contra ele com a espada desembainhada.

            Na verdade, tratam-se de informações sucintas como que oferecidas “en passant”, cuja reiterada presença, aliada às razões, justificadas como sendo de Deus e do rei, que as provocam, funcionam como elementos devassadores em relação às verdades enunciadas pela História Oficial que, na interpretação magistral do romancista chileno se revela, então, sob incomuns e perturbadoras nuanças.

 

domingo, 15 de outubro de 2006

Os prisioneiros


       Designado pelo vice-rei do Peru para fundar uma cidade, Juan Núñez de Prado, com duzentos homens percorreu um extenso itinerário durante o qual enfrentou discórdias e lutas e toda sorte de desventuras. Carlos Droguett, sem se afastar da história oficial, relatada nas Crônicas da Conquista, refaz esse caminho em El hombre que trasladaba las ciudades (Barcelona, Noguer, 1973), um dos mais belos e perfeitos romances latino-americanos. No segundo capítulo, o capitão e seus homens avançam no Continente, em pós de um sítio para assentar, pela segunda vez, a cidade.

 

            Temos mais prisioneiros que soldados livres e leais? ele perguntou com desconfiança. Pergunta na qual os adjetivos não têm, certamente, um sentido absoluto. Porque livres não poderiam ser considerados esses soldados que, ao sair de Cuzco para a conquista do Continente, não tinham outra escolha senão seguir o capitão ainda que fosse nos seus desvarios. Porque, tampouco, lhes era possível continuar a serem leais a quem levava em conta, somente, as próprias vontades.

            Juan Núñez de Prado já estava a meio construir a cidade quando Dom Francisco, em nome de Pedro de Valdívia, colonizador do Chile, chega para contestar uma presença que, segundo ele, invadira as terras sob sua jurisdição. Juan Núñez de Prado decide trocá-la de lugar, carregando seus pedaços nas carretas e no dorso dos índios. Muitos de seus homens, porém, não quiseram segui-lo para não abandonar o que já possuíam: agora estão presos todos os que tinham suas casas terminadas e varridas. Ao longo do relato, esses presos irão evidenciar, nos maus tratos que recebem, a vilania do poder absoluto que se arvora no direito, em nome de Deus, do rei, da Justiça,  de privar de liberdade aqueles que lhe são contrários  e decidir lhes  a vida e  a morte .

            Na verdade, são muitos os presos. Enquanto os soldados tidos por leais, os cruéis e desalmados, os que nada fizeram para levantar a cidade, os mais aventureiros, os mais vis, os que satisfeitos e cantando, cospem nas ruínas, fendem as muralhas, arrancam portas, lançam ao chão as janelas, deitam abaixo as vigas, acompanham o capitão, os que semearam milho e plantaram flores e esculpiram uma sacada, são feitos prisioneiros. E, não somente, por ainda, aos olhos de todos, estarem construindo a cidade ao invés de destruí-la, mas, pelo que diziam nos intermináveis fins de tarde, vigiados que foram até nos seus sonhos como diz um dos capitães de Juan Núñez de Prado. Passam presos, empurrados pelos arcabuzes, despenteados e apressados, com a roupa rasgada, a camisa voando no ar cálido [...], impelidos com insolência, atados aos móveis, ligados de dois em dois; passam, manietados na direção das masmorras, um deles a olhar como o amarravam com sossego, com destreza na que não havia ódio nem maldade mas, somente, unção presa ao ofício, somente um rápido e evidente afã de trabalhar bem , de atar dois braços ou uma braçada de lenha de forma que não se desatassem.

Ao longo da ação, o narrador registra o quê vê e, muitas vezes, também, o que, na sua onisciência lhe é dado saber. Ao se fixar num prisioneiro que se move aos tropeções, observa que está amarrado de um modo torpe e caricaturesco, para mostrar melhor a farsa e a falsidade que o levam a gritar divertido e sofredor. Ou, em outro que, atado com as cordas que lhe subiam até os ombros, ia caminhando apressado, quase desejando correr embora ninguém o empurrasse ou vigiasse; ia sozinho e um cão lhe seguia os passos, sem latir, sem uivar, ignorando o que de mau lhe acontecia. Ou, ainda, em outro prisioneiro que reza aos gritos, canta, clama, fala de remorsos e da lealdade ao rei e à rainha e parece rir de todos, também de si mesmo.

Por vezes os prisioneiros se mostram pelo olhar de Juan Núñez de Prado ou pelo olhar do padre Cedrón e as perguntas que um e outro se enunciam,  se constituem, então, elas mesmas, as suas respostas: somente fizemos justiça.

domingo, 1 de outubro de 2006

Os anônimos



Designado pelo vice-rei do Peru para fundar uma cidade, Juan Núñez de Prado, com duzentos homens, percorreu um extenso itinerário durante o qual enfrentou discórdias e lutas e toda sorte de desventuras. Carlos Droguett, sem se afastar da história oficial, relatada nas Crônicas da Conquista, refaz esse caminho em El hombre que trasladaba las ciudades (Barcelona, Noguer, 1973), um dos mais belos e perfeitos romances latino-americanos. No segundo capítulo, o capitão e seus homens avançam no Continente em pós de um sítio para assentar, pela segunda vez, a cidade.
 

            Juan Núñez de Prado partiu de Cuzco com um punhado de homens empobrecidos, sonhadores, polidos pela miséria, perseguidos e solitários [...] na direção das montanhas. Levados pelas carretas e pelos cavalos, usando a força dos índios para carregar seus fardos, ele e seus capitães mal sabem daqueles que os acompanham a não ser que eram homens arrancados da família, da amizade ou da justiça. Anônimos, se constituem a presença que povoa o lugar da ação: caminhando devagar, atirados no chão sob as árvores, sentados em torno das fogueiras, acocorados no alto das vigas; rindo, conversando em voz baixa ou com vozes de sono que pareciam sair de entre as roupas, falando cautelosamente, falando em voz baixa, sem desejar romper o silêncio, conversando entre si, empurrando os cavalos, a bocejar com sarcasmo, roncando, rindo com alvoroço, assobiando para os cachorros, gritando furiosamente,  deixando ouvir queixas, murmúrios, talvez rezas, murmúrios misteriosos e fatais, a levar cordas ou um monte de pás, a fazer fogo sob as tendas. Deixam-se ver a levantar o rosto e estender a vista para o horizonte, a olhar, assustados ou esperançosos, para o padre capelão; com orgulho e desprezo para os capitães, batendo as portas para derrubá-las, empurrando os prisioneiros. Uma presença marcada, também, pelo olhar de Juan Núñez de Prado que sobre eles se pousa ao descerem das carretas, ao rodear o padre Cedrón que lê a sorte nos naipes, ao se afastarem e desaparecem detrás dos cavalos. Ou, quando os escuta tossir ou gritar. Mais próximo deles, o padre Cedrón lhes ouve o barulho das conversas, dos risos, das vozes de suspeita ou troça ou desprezo, as palavras soltas e misteriosas[...]. E o padre Carvajal, ao perambular, à noite, pela cidade, os vislumbra no meio das roupas, espalhados pelos cantos ou em cima do teto. Sente-lhes a respiração pesada e tranqüila e, ainda, lhes percebe os rostos, submergidos superficialmente na luz da lua, rostos limpos e pacíficos, sem ódios e sem necessidades, plenos de silêncio e de sabedoria elementar [...].

            Outras vezes, esses soldados anônimos se diluem, ainda mais, no pano de fundo do qual fazem parte: quando, no relato, são mencionados pelo pronome indefinido alguém, quase sempre sujeito de um verbo a indicar emoção: alguém ria francamente espalhando um riso tumultuoso e cauto, alguém se queixava, tossia com escândalo, cantarolava ou resmungava, exclamava, falava com autoridade, alguém muito jovem soluçava. Alguém sacudia umas roupas como fazendo voar o maldito tempo que não parava de passar, esvaziando uma lembrança da cidade abandonada. Referidos ou como gente (gente acalorada ou pálida) ou como homens (gritos pausados dos homens, os homens riam, não pareciam sentir calor); ou, ainda, pelo gentílico. O capitão, ao refletir sobre o destino da cidade, pensa nos espanhóis; o vice-rei, a divisa, pela janela aberta para a praça, os espanhóis débeis que passavam  agachados sob o vento forte.; o padre Carvajal, caminhando entre os espanhóis que arrastavam móveis pelo meio da rua, os percebe fracos, esbranquiçados, frágeis, demasiado frágeis, demasiado transparentes.

            Eles não tem nome, nem um perfil delineado; não enunciam vontades, pouco se lamentam. Suas vozes e seus gestos, no entanto, dão vida e movimento ao relato e se constituem o suporte da ação maior: o fazer e o desfazer da cidade. Suporte que, em breves sequências, lhes determina a  presença, impedindo que, por obscuros e tidos por sem valor, sejam relegados ao esquecimento.