domingo, 25 de julho de 2004

O olhar negado


            No dia 18 de outubro de 1969, em “Do Caderno H”, publicado pelo “Caderno de Sábado” do Correio do Povo, de Porto Alegre, ao longo dos anos, Mário Quintana conta que, estando no Rio de Janeiro, um amigo e editor que ele chama de P.M.C., se ofereceu para lhe mostrar a cidade. Ao que, então, lhe respondera: -Não, muito obrigado, Paulinho! Eu sou evoluído, tenho horror à natureza. O que mais me agrada no Rio são os túneis. Frase trocista do poeta que, no entanto, desvenda algo desta sua relação com a cidade, sempre a lhe oferecer motivos poéticos. Breves menções: a praça, o coreto, o quiosque, a rua, a velha rua, as casas cerraram seus milhares de pálpebras. As ruas pouco a pouco deixaram de andar, os ritmos do tráfego vibram como uma cigarra. Ou constatações sobre um modo de viver que se instaurava nessa época, levando de roldão muita coisa cujo valor só é passível de ser percebido por uns poucos. Em 15 de agosto de 1970, ele opina que O mais triste da arquitetura moderna é a resistência de seu material; lamenta as casas vendidas para construtores de edifícios, os muros que demoliram; constata que hoje se mora em caixas de sapatos. E suspira: Ah! Os ângulos contundentes das atuais construções urbanas... Percebe que os cafés, esses cafés de barranco onde se passa às pressas e indignamente originam uma geração que parece tão no ar.

E, testemunhando sobre essa beleza tênue, imprecisa, efêmera, apenas perceptível que se oferece, somente, dir-se-ia, a alguns eleitos, fala do olhar que se nega a ver o mundo que o rodeia. Em “As coisas” (“Do Caderno H” de 28 de agosto de 1970) como o indica o título, sabiamente melancólico, reflete sobre coisas que especifica, sem deter-se, serem coisas da natureza. Na primeira estrofe, uma afirmação: O encanto / sobrenatural / que há / nas coisas da natureza. Na segunda, a confissão da surpresa diante do que elas contém de singular: coisas que parecem não terem beleza alguma porque não lhes foi concedido um segundo olhar. E como que uma descoberta do poeta, o segredo, um dos grandes segredos do mundo que ele, todavia, comparte com o interlocutor. E o poema, quase prosa nos breves versos, desabrocha na última estrofe com o recurso simples do pleonasmo. A expressão não houve nunca quem lhe desse é repetida e, a ela, se acrescentam três versos: Ao menos / um segundo / olhar!. E o lirismo é ampliado nas pausas, obrigatoriamente advindas da expressão cujo sentido se completa no verso seguinte. Sobretudo, no significado estabelecido da ausência (não houve nunca quem lhe desse) e do olhar negado (quem lhe desse / ao menos  /um segundo  / olhar).


Em “Urbanística” (“Do Caderno H” de 18 de novembro de 1969), Mário Quintana legisla: “Todos os jardins deviam ser fechados. / Com altos muros de um cinza muito pálido ./ Onde uma fonte /   pudesse cantar / sozinha / entre o vermelho dos cravos. Desenha um espaço onde o som cantante da água, a cor e, talvez, o perfume, fazem presumir deleites. Nos cinco versos seguintes, a explicação para essa convicta asserção: O que mata um jardim não é acaso / alguma ausência / nem o abandono... Ausência e abandono, certamente, inquestionáveis razões de tristeza à qual se acresce algo maior: a indiferença. Reiterada a expressão, O que mata um jardim, ela se completa agora pela verdadeira causa do aniquilamento: a indiferença de quem passa e com o olhar vazio.

            O poeta, na natureza, muito além das formas e das tonalidades, percebe com seus olhos de ver o mundo, a solidão que o olhar ausente, o olhar negado tem o poder de traçar. Como, também, no fado dos homens.

domingo, 18 de julho de 2004

Nerudianas: Ode ao beija-flor


            No dia 5 de fevereiro de 1948, o Tribunal de Justiça do Chile emitiu uma ordem de prisão contra Pablo Neruda que, passa, ajudado por amigos e durante meses, a viver escondido no seu país. O relato sobre esse período em que viveu de casa em casa, ludibriando a polícia, até atravessar os Andes a cavalo e chegar a San Martin de los Andes, na Argentina, foi feito por seu amigo José Miguel Varas no livro Neruda clandestino (Santiago, Alfaguara, 2003). Baseando-se, principalmente em três textos – o de Jorge Bellet, publicado na revista Araucária, o de Victor Bianchi, “Misión al lago Maihue” e o discurso de Pablo Neruda quando da entrega do Prêmio Nobel – além de outros, consultou, também, a imprensa da época e ouviu o testemunho de pessoas que, nesse período de clandestinidade da vida do Poeta, com ele conviveram. Entre eles o de Jaime Perelman que na época tinha doze anos e que cedeu o seu quarto e sua cama, para que os pais pudessem abrigar o Poeta e Delia Del Carril. Lembra-se que, fechados em casa, Pablo Neruda escrevia o Canto General e sua mulher passava o dia desenhando mãos e cavalos em grandes folhas de papel. À tarde, ao chegar das aulas ele e o irmão conversavam com o Poeta que lhes contava histórias de elefantes, de aves, de macacos ou improvisava cenas teatrais em que eram os donos dos textos e das atuações. Porém, desse convívio, o que mais o impressionou foi a “Operação beija-flores”. Pablo Neruda havia observado que nas trepadeiras floridas da casa vizinha apareciam muitos beija-flores para se alimentar. Pensou em atrai-los para os galhos secos do arbusto que estava perto de uma janela da casa onde se hospedava, explicando o seu plano para os meninos: primeiro fazer flores de papel colorido e, então, colocar sob elas, presas com arame, ampolas de injeção cheias de mel diluído na água. Ainda que toscas e de tamanhos diferentes, os beija-flores se deixaram enganar e iam diariamente sorver o mel das estranhas flores para alegria dos meninos e do Poeta.

            Anos depois, em 1955, Pablo Neruda compõe as odes que publica sob o título Nuevas Odas elementales (Buenos Aires, Losada, 1956). Entre as cinqüenta que dele fazem parte, a “Oda al pica-flor”. À semelhança de outros que fazem parte do livro, é um longo poema. Muito breves como a acompanharem o vôo relâmpago do pequeno pássaro, os versos o definem, aproximando-os da água, do fogo, do arco-íris. Dizem de seus movimentos (minúscula bandeira voadora, vibração do mel / raio de pólen) e metaforicamente, o descrevem numa sucessão de imagens (semente do sol, fogo emplumado, fio de ouro, fogueira verde). Entre elas, o Poeta o interpela (o que es, / de onde te originas?), numa pergunta cuja resposta ele próprio encontra. E perguntas e respostas expressam essa inclinação que possui o Poeta de se maravilhar diante das coisas e dos seres. Imagina-o nas antigas eras (na idade cega do dilúvio), no percurso mágico das transformações (a rosa congelada em antracita; o fragmento desprendido do réptil: última / escama cósmica, uma / gota / do incêndio terrestre para ser, agora, feito de beleza. Resposta a qual se encadeiam os dizeres sobre sua vida (dormes numa noz, giras / como luz na luz / ar no ar), sobre sua valentia (o falcão / com sua negra plumagem / não te amedronta), sobre as suas cambiantes cores (escarlate, amarelo, verde, laranja, negro).

            Na inigualável invenção com que se serve das palavras, o Poeta faz nessa ode explodirem nuanças de cor e danças do vôo, recriando o encanto sempre tão efêmero que é a presença de um beija-flor. Pequeno ser supremo, milagre que arde desde a Califórnia até a Patagônia, ele diz e ao esboçar a geografia americana, não lhe nega esse destino de Continente massacrado que os últimos versos do poema não deixam esquecer quando à luminosa figura do beija-flor, Pablo Neruda contrapõe a sombra ao definir o beija-flor também como pétala dos povos que calaram, / sílaba do sangue enterrado, / penacho / do antigo / coração/submerso.

 

domingo, 11 de julho de 2004

Nerudianas: Ode à colher


         Em 1954, Pablo Neruda publica Odas elementales, resultado de seu desejo, assim o explica em Confieso que he vivido, de reescrever muitas coisas já contadas, ditas e reditas. Foi um livro muito bem recebido pela crítica, mesmo daquela que, até então, lhe havia sido adversa. Nele revelou, como nos que se lhes seguiram, Nuevas odas elemementales (1956) e Tercer libro de las odas (1957), um novo rumo na sua poesia, um dos seus mais ricos ciclos poéticos. Com admirável claridade e alegria, busca mostrar a beleza das coisas simples, aceitando o dever que acredita ser o do poeta: cantar para todos e, com o seu canto, dar um sentido à vida.

            “Oda a la cuchara” (Ode à colher) pertence ao Tercer libro de las odas, cujo primeiro poema, “Odas de todo el mundo”, como a “Ode à crítica I” e “Ode à crítica II” (respetivamente de Odas elementales e de Nuevas odas elementales), é um dos manifestos desse lirismo que pretende doutrinar com versos: o que é belo também é um ensinamento para os homens. Como o pregão de um mascate – Eu vendo odes, De tudo / um pouco / tenho / para todos – Pablo Neruda as oferece: elas são de todas as cores e tamanhos, seráficas, selvagens, finas / enroladas / como arame ou de inclinação dolorida / cobertas / pelo / aroma / enterrado / dos lilás. Um universo em que se misturam as escuras alegrias infundadas, as coisas do coração partido, com a simplicidade do cotidiano, presente no tomate, no cimento, nos trens, na colher.

            A estrofe inicial da “Ode a la cuchara” remete a esse querer transmitir ensinamentos. Nos primeiros versos, define a colher como a concha, a mais antiga mão do homem, cuja forma, na madeira ou no metal de que é feita, deixa perceber, ainda, o molde / da palma / primitiva [...], oco nascido da palma de sua mão, ao qual o homem acrescenta um braço de madeira. Assim, espalhou-se por itinerários feitos de montanhas, rios, barcos e cidades, castelos e cozinhas onde o difícil – algo na aparência tão óbvio, mas que o Poeta não deixa por dizer – foi ela juntar-se com o prato do pobre e com sua boca.

A quinta estrofe é feita da voz do Poeta , não mais a defini-la, cada / vez / mais / perfeita, a lembrar que, pequenina, na mão da criança, lhe oferece o mais antigo / beijo da terra /[...], porém a assumir um coletivo indicado pelo verbo, na primeira pessoa do plural, que propõe o tempo de uma nova vida. Os verbos lutar e cantar, indicando as ações necessárias, num gerúndio a expressar continuidade, e o verbo será a expressar a certeza desse mundo sem fome que o Poeta vislumbra. E que imagina imenso com todos os pratos na mesa, um vapor oceânico de sopa e um total movimento de colheres. O alimento, um direito de todos os homens como a beleza e a alegria, representada pelas flores, acrescidas a essa mesa posta e farta. Flores humanizadas pelo adjetivo felizes que envolve também o alimento (a sopa fumegando) e aos que dele usufruem (compreendidos no total movimento de colheres). Significado luminoso e em acorde com o pensamento do Poeta ao almejar uma sociedade sem castas. E, em acorde com os primeiros percursos da colher ao abrigar a água e o sangue / selvagem / palpitação / de fogo e caçada e a herança silenciosa, / das primeiras águas que cantaram. Na sua voz, que deseja ensinar, se mistura a que procura o interlocutor (Sim, colher, diz um de seus versos) e a que exprime a sua esperança e a de outros na utopia de entrever o mundo sem fome. E iluminado pela beleza das flores felizes.

 

 

 

domingo, 4 de julho de 2004

Litania para o Che


 Bem aventurados os revolucionários que  não  presenciam o triunfo da Revolução.
       Nicolás Gómez Dávila.           

            Na Introdução ao livro Poesia (1945-1990), de Idea Vilariño, Luiz Gregorich lembra não ser outorgar maior densidade e unidade ao texto, suprimir alguns poemas ou mudar-lhes a ordem desse volume que organizou e do qual fazem parte os poemas anteriores ao primeiro livro de Idea Vilariño e os que foram publicados em La suplicante (1947), Cielo cielo (1947), Paraíso perdido (1949), Por aire sucio(1951, Nocturnos (1955), Poemas de amor (1957), Pobre Mundo (1966) e No (1989). 
necessário deter-se na sua trajetória literária pois qualquer estudo sobre o panorama histórico da Literatura Uruguaia lhe reconhece um lugar privilegiado, nem na sua longa vida docente e nem em seus trabalhos de pesquisa sobre o tango ou sobre os ritmos poéticos. Tampouco nas datas em que foram escritos os poemas o que explica, então, ele ter se permitido, no desejo de outorgar maior densidade e unidade ao texto, suprimir alguns poemas ou mudar-lhes a ordem desse volume que organizou e do qual fazem parte os poemas anteriores ao primeiro livro de Idea Vilariño e os que foram publicados em La suplicante (1947), Cielo cielo (1947), Paraíso perdido (1949), Por aire sucio(1951, Nocturnos (1955), Poemas de amor (1957), Pobre Mundo (1966) e No (1989).
 
          Pobre mundo foi publicado, como seus livros anteriores, pela Banda Oriental e doze anos depois, em 1988, pela Arca editoras, de Montevidéu. No volume organizado por Luis Gregorich, publicado em 1994, pela Cal y Canto, dele fazem parte vinte e seis poemas, agrupados em duas partes. Na primeira, denominador comum de todos os poemas de Idea Vilariño, o desconsolo, advindo de sua relação difícil com o mundo, cujo transitório – um perfume (áspero olor a pino), um som (la voz clara lejana / de um pájaro), uma silhueta (una niña) – a machuca, a amedronta. Na segunda parte, inquietações que não constavam de seu universo lírico: fome na Índia e no Brasil, o medo dos que vivem em Almeria, pequena cidade espanhola, da bomba H, estar perdida no mar, a tortura, os folhetins que documentam as mortes dos guerrilheiros na Bolívia. Inquietações, certamente, circunstanciais se não fossem próprias desse pobre mundo, anunciado no título do livro e do primeiro poema que prevê – será desfeito, voará em pedaços – o seu fim.
 
         Entre esses poemas, “Digo que no murió” foi escrito sob o signo da dor quando da morte de Che Guevara, em outubro de 1967. O primeiro verso repete o título, digo que não morreu e o segundo o reafirma: não acredito. Os que seguem, procuram razões: não permitiram que o irmão o visse, o deram por morto muitas vezes, tantas foram as contradições e, sobretudo, ele não iria se deixar cercar na clareira de um vale e ficar ali até que a metralhadora lhe quebrasse as pernas. E principalmente, porque ele ainda tinha muito o que fazer na América Latina. E, outra vez, as negativas, refúgio ineficaz diante do fato inegável: embora haja luto em toda a América Latina, ainda que o chore Cuba e que o próprio Fidel Castro o afirme, ela não vai acreditar. E imagina que algum dia irão dizer que está no Brasil ou na Colômbia ou na Venezuela para ajudar a todos. Convicção que se desfaz, no entanto, em face a evidência da evidência fotográfica, diante da qual não há consolo. Então se ilude, acreditando na memória dos homens. Que eles não se esqueçam do rosto, da mão de quem o vendeu, do nome desse tenente que o matou.

         Se nos seus primeiros poemas Idea Vilariño possuía uma expressão hermética, como diz Mario Benedetti no artigo sobre ela, publicado em Literatura uruguaya siglo XX, mostrando um poeta que gira esmeradamente ao redor de suas angústias, neste poema, “Digo que no murió”,ela se volta para si mesma porém num sofrimento que lhe é adjudicado e que ela expressa sem reservas, não se furtando à dúvidas mas querendo convencer de uma verdade na qual ela mesma ão pode crer. E o faz quase em prosa, eliminando sinais de pontuação, usando duas comparações e uns poucos adjetivos e, principalmente repetindo palavras e expressões para elaborar uma comovedora expressão poética, marcada, sobretudo, pela simplicidade.
 
          Trinta e sete versos compõem o poema. Breves, livres das amarras de pontuação, completando-se em enjambements que enfatizam a expressão do verso seguinte. As comparações têm como primeiro elemento o Che, belo como um raio numa delas e, na outra, a sua ação: incendiando a América, como um raio de amor. Quanto aos adjetivos, além de hermoso (belo), a qualificar o Che, os demais se referem à foto que lhe fizeram, já morto, qualificada por Idea Vilariño de atroz e à bota que assinalava seus ferimentos, suja bota e norte-americana e ao coração, mais sujo que essa bota”, do tal tenente Prado.
 
          O que, todavia, aprofunda o lirismo do poema são os pleonasmos. Substantivo, conjunção, verbos se repetem para dizer dos atos do Che. Principalmente, para falar da desolação que a sua perda causou: aquela bota, como partia a alma aquela bota. Uma desolação que procura consolo num ato futuro: lembrar seu carrasco quando chegue, quando soe a hora.
E, pleonástica, essa idéia / sentimento, negação que se reitera: : Yo no lo creo,No hay que creerlo, Yo no voy a creerlo,No creo que murió, no puedo creerlo, Y no voy a creerlo. Como se a força do desejo tivesse o poder de exorcizar os males.