domingo, 28 de abril de 2002

Convicção


            Em 1944, a Livraria do Globo de Porto Alegre, na sua Coleção de Autores Brasileiros, publica, em segunda edição, Fronteira Agreste. Ainda que sob o rótulo de romance, nas suas primeiras páginas se abrigam, sobretudo, as descrições dos tipos e as cenas do viver campeiro do Rio Grande do Sul. Não, porém, a de heróis ou de lances de valentia, mas a de homens que a vida já domou logo ao nascer. A galeria não é pequena: Geraldo, o peão caseiro, que vai buscar água na cacimba, ordenha as vacas, se ocupa da horta, leva lenha para a cozinha, além de ser o despertador da peonada, um verdadeiro quero-quero do galpão. Ou Tio Remígio, de cabelo branco e a cara de sagüi, toda enrugada. Ou, ainda, seu Guedes que aprendeu a ler no quartel onde foi ajudante de enfermagem e com o livro de sintomatologia que levou para casa, faz de médico, receitando as ervas do campo. E, muitos outros e outros tantos peões que em torno da roda do mate se irmanam no silêncio de olhos cravados no fogo. Na descrição que Ivan Pedro Martins faz desse ritual, se acentua a realidade que foi mascarada pela idealização do tipo gaúcho como o centauro dos pampas, como o monarca das coxilhas. No afã de explicar a origem da palavra gaúcho, uma das inúmeras versões, fala da metátese, fenômeno lingüístico, em que alguns fonemas trocam de lugar no mesmo vocábulo. Daí, a hipótese de que a palavra gaúcho teria vindo da palavra guaxo (em espanhol, guacho), aquele que não tem mãe ou que dela foi separado ainda no momento da amamentação.E guaxos, ou criados como tal, esses gaúchos que, ao redor do fogo, são como irmãos no destino que os iguala: nascer entre trapos sujos e sacos velhos; crescer a engatinhar na terra e no barro; já, antes dos quatro anos, ser responsável por tarefas miúdas e por tarefas maiores, antes dos sete. Ou, levados para servir de negrinhos em alguma estância e, então,fazer mate para o patrão, por os aperos no cavalo, levar recados e, sempre agüentar, as implicâncias dos adultos. Mal crescem, começam a tropear ou a trabalhar de peão e peão não tem família na vida nômade que leva. Um ou outro consegue ser posteiro e, então, reproduz com a mulher e os filhos, a vida de pobreza que sempre teve. Um itinerário, que, na verdade, os irá igualar a todos os pobres que, de seu, apenas possuem algum sonho: a vontade de ter coisas que não podem ter.

            Há uma evidente simpatia do romancista para com esses homens, na seqüência que os descreve, mateando no galpão, como pobres seres, cujas esperanças se despedaçam, se esboroam, se diluem diante da inexistência de oportunidades. Sobretudo, ao falar da infância que lhes cabe, as palavras adquirem um lirismo a emergir da vivência e espontânea e prazerosa da criança rodeada pela natureza que é o seu mundo imediato a se revelar no sol, lambendo a coxilha, botando uma capa de ouro no lombo verde do pasto, na ovelha guaxa e nos cachorros, companheiros de brinquedo, no rio onde aprendem a nadar como pequenos bichos. Uma vida tão sem mais nada que nem seria vida de gente se o trevo não florescesse nas coxilhas e na primavera os campos não se pintassem com todas as cores das flores silvestres, enquanto eles entravam no mato para derrubar alguma abelheira, lambuzando-se nos favos gordos, de barriga para cima, olhando os pássaros, as folhas e o céu brilhante lá m cima. Como, também, a clara intenção de se deter num momento em que a História do Rio Grande do Sul adquire contornos diferentes daqueles que a tradição lhe desenha e os homens se movem no vazio das convicções, devorados pela imobilidade a que uma vida morna os destina. Convicções que, no entanto, logram sobreviver à revelia de todos os reveses, pois, no final do livro, entre os comentários sobre a Segunda Guerra que se alastra, tão longe, o velho sangue dos guerrilheiros ainda persiste na frase que se eleva para dizer: Quando os gaúchos fô essa guerra acaba.

domingo, 21 de abril de 2002

Rouge Brésil. A opção


            Chegaram em 1555, ainda crianças, com a expedição de Nicolas Durand de Villegagnon que pretendia dar à França domínios na América: Just, filho de François de Clamorgan, um capitão francês que lutava na Itália, nesse tempo em que a França fazia a guerra sem vivê-la, como diz um personagem do romance. Imbuído do valor da nobreza de seu nome e dos ideais da fidalguia, a se sentir incômodo sob o céu tropical e o calor do sol, a duvidar de seu futuro que desejava alhures, a se desapontar com o trabalho que devia realizar, deixa-se, no entanto, cativar por Villegagnon e por seu sonho: Tudo está por construir, tudo está por conquistar. Ao desembarcar na ilha – uma ilha é o lugar mais seguro para se fortificar – onde aportaram os navios, entre os que se deram conta que o Novo Mundo era só um deserto e, então, se apavoraram, também teve medo. E, ao se manter em guarda, ignorou a paisagem que o rodeava, ao contrário de Colombe, vestida de menino para poder acompanhá-lo – eram tidos como irmãos – que se rendeu à beleza da baía da Guanabara, ao céu azul, ao mar de águas transparentes e mornas. E ambos se submeteram ao que deles se esperava: Just obediente as suas certezas européias, lê os poucos livros que acompanharam Villegagnon, aprende com ele as lutas nobres e orienta os trabalhos de construção do forte que será erguido na ilha. Colombe, depois de ajudar no registro de tudo o que havia na ilha, espera, impaciente, o momento de ir para terra firme e ter contacto com os indígenas para aprender-lhes a língua, pois, para isso, para ser intérprete, é que havia sido embarcada.

            Porém, nos cinco anos que se passaram, o forte Coligny, embrião da França Antártica no Brasil, foi palco de injustiças, repressões, intrigas estéreis, discussões tidas por transcendentais, desânimos, dissidências, na busca insensata de repetir, nos trópicos, a Europa. Colombe, que da ilha se ausentava para, em terra firme, viver entre os índios, nas vezes em que retornou, se mostrava, entre os brancos, a única a conservar uma radiosa saúde, tirada das águas claras da montanha, da sombra delicada da floresta e dos frutos que ela colhia nas árvores e, desolada, percebia o que os homens haviam feito da pequena ilha solitária e vulnerável: dois meses depois do desembarque, se tornara irreconhecível. Centenas e centenas de coqueiros haviam sido cortados e reinava o barulho dos enxadões, das serras e das algaravias dos trabalhos. Depois, também os cedros foram abatidos e as taquaras e os juncos e o relevo da ilha passara a ser feito de aterros e de muros em construção. E, também se dá conta que a ilha, minúscula e brutalmente povoada, também, era dominada pela violência e pelo ódio e, assim, destruída. Na ousadia de quebrar normas estritas, escolhe viver entre os índios, sem ignorar que não lhe será permitido voltar atrás mas, ainda assim, foge para terra firme.Correndo entre as flores da floresta, seu corpo aguerrido e acariciado de pinturas marciais, jovem e tenso como as folhas turgentes das seringueiras, ela se sentia na encruzilhada de todas as forças e de todas as doçuras, de todas as firmezas e de todas as ternuras.  Forte e sábia o suficiente para recusar, quando Just lhe pede para voltar à ilha que, de longe ela via destroçada na baía que, em  suas cores, resplandecia de majestade e de paz.           

            Como um canto de esperança termina o romance de Jean-Christophe Rufin, Rouge Brésil que a Gallimard de Paris publicou no ano de 2001 e que foi laureado com o PrêmioGoncourt: Colombe e Just, já de posse dos segredos – o pai já não mais existia e assim cessariam de buscá-lo, eles não eram irmãos – que lhes turvava a vida e os aprisionavam num parentesco inexistente, floresceram para a vida adulta livre de peias. Negando-se às lutas, às intrigas, às violências, às ambições dos que tinham a certeza de serem civilizados, escolhem a felicidade no seio da floresta e na vida entre os índios.

           

domingo, 7 de abril de 2002

Rouge Brésil. A descoberta


O perfume. Era ácido, suculento, túrgido, primaveril. Fechando os olhos, surgia a vontade de dizer que era colorido, vermelho, talvez alaranjado. 

            Ninguém, ainda, gritara terra à vista mas, o cheiro, estranho, ao mesmo tempo frágil e intenso, envolvia o barco e parecia pairar sobre a superfície do mar: um imenso cheiro de fruto maduro. Nicolas Durand de Villegagnon, como todos no navio, se deixou impressionar e comover. Chorou de alegria antes de avistar a terra, dois dias depois. Partira do Havre-de-Grâce, com três navios em busca do território que seria a França de além mar. A sua viagem, a luta para construir na ilha da baía da Guanabara, onde aportou, o Forte que chamaria de Coligny e outras histórias da travessia e da chegada que se entrelaçam, são contadas no romance de Jean-Christophe Rufin¸ Rouge Brésil, que a Gallimard de Paris, publicou no ano 2001.

            Num dos navios, o “Grande Roberge”, Villegagnon viajava com a sua corte de senhores de armas e de sábios. O “Rosée”, menor do que os outros, continha nos seus porões, vacas de leite, mulas, carneiros, galinhas, cabras, cães de caça; e padeiros, marceneiros, chapeleiros, encadernadores. Entre eles, Just e Colombe, quase crianças, lançados na aventura, sem retorno, de uma viagem para a América, no ano de 1555. Acreditando estar indo ao encontro do pai, um capitão francês que lutara na Itália, foram ludibriados para aceitarem partir sem saber a função que lhes estava destinada: aprender a língua dos indígenas e servir de intérprete entre eles e os que chegavam ao Continente.

Quando, no horizonte, apareceram as primeiras linhas de terra firme, pinceladas de azul, um grande medo invadiu os soldados, imbuídos das certezas populares que lhes indicavam terem chegado aos abismos em que seriam lançados. No momento do desembarque, medrosos e desconfiados, mal pisaram as areias brancas, se agruparam sob as sombras dos primeiros coqueiros. Colombe lhes adivinhava o susto no rosto e no silêncio. Mas, além de se admirar ao perceber que somente ela não estava temerosa ou inquieta, se sentia feliz e calma o suficiente para procurar abrigo sob as grandes árvores e se deixar adormecer. Uma felicidade que a irá acompanhar ao receber ordens de partir, na companhia de uns poucos soldados, munida de um caderno e de um tinteiro, para, em terra firme, aprender a língua dos índios. Então, ao se adentrar na floresta, se inicia, para ela, um tempo de descobertas: o roçar das serpentes nos cipós, a fuga dos pequenos bichos, o vôo ondulante dos pássaros coloridos, a beleza do corpo humano que se rende na espontaneidade e pureza da nudez. E se mostrará receptiva a tudo que o universo do Continente no qual penetra lhe oferece: a limpidez e o toque das águas, os perfumes, os ruídos, a aprendizagem do viver indígena.

            Ao chegar, pela primeira vez, na taba dos tupis foi rodeada pelas mulheres, despida, levada para um pequeno lago, sobre o qual jorravam duas minúsculas cascatas. Induzida pelas índias, entrou na água onde a esfregaram com punhados de vegetais que pareciam espuma. Os dias que se seguiram foram lhe ofertando o perfume das essências de pau-brasil e de coníferas, do capim, do barro fresco e das resinas; os ruídos dos animais, murmúrios, a percussão dos tambores, os guizos de maracás, os risos barulhentos. E a compreensão, por vezes à meias, do ritual dos gestos e das crenças: o mover-se em silêncio na oca, numa presença que, no coração da floresta, não se mostrava maior do que a dos pássaros, das serpentes, dos insetos; a cerimônia de pintar o corpo de negro, de vermelho, de branco e dançar e cantar, buscando proteção contra os maus espíritos e fumar e beber; a idéia do sagrado – as flores, os rochedos, as águas vindas das montanhas –, regido por uma infinidade de espíritos que tudo protegem; a concepção do amor, uma aptidão múltipla e abrangente que não se satisfaz de um só ser mas acapara os seres mais próximos, a tribo, o sol, as árvores, a água das cascatas, o vento, a terra, a noite e o dia, o fogo e o sal, o avestruz e a anta.

            Ao aceitar esse mundo novo que lhe resulta harmonioso, por ele será cativada. Num de seus retornos à ilha onde Villegagnon, usando sempre da força e da crueldade, queria instituir a França Antártica, ela percebe que deseja, outra vez, sentir a grande paz da floresta, banhar-se nas torrentes e se esforçar para se mover na natureza sem perturbá-la.