domingo, 31 de dezembro de 1995

Os pardais .2

          No banco da praça, Armando e Geraldo conversam. No outro lado, de uma das ruas, surge um grupo de rapazes, claros e fortes, com uniforme de escoteiro. Marcham num alinhamento sem defeito e atirando as pernas para a frente e para cima. Avançam em passo de ganso, em fila de três. Sob a ordem de comando e sob a bandeira de símbolo alienígena repetem com voz forte a saudação que o braço acompanha.

          Uma cena que repete outras já vistas por Geraldo no cinema: multidões de soldados com capacete de aço, marchando naquele mesmo passo.

          Na praça da pequena cidade, Armando recém havia dito, a seu interlocutor: Felizmente o pesadelo passou. Nos dias que correm tais fatos não são mais possíveis. Referia-se ao episódio dos Muchers, um episódio de fanatismo. Mas, não percebe que esses jovens,  que avançam com ímpeto marcial, de cenho  carregado, batendo os saltos dos sapatos grossos, estão a executar em terras do Brasil rituais submissos às mesmas  idéias e convicções que, belicamente, querem ser impostas no Velho Mundo. Personagens e ações que estão em acorde com o cenário que parecia uma cidade do Reno, extraviada em terra americana.

          Para Geraldo, vindo do norte do país, era como ter cruzado os oceanos, era como estar longe da pátria. Diante de seus olhos, moças loiras, a austeridade das fachadas, o gótico da igreja. Mais do que tudo, dominando, uma visão de mundo, perfeitamente definida, sintetizada no título do romance: Um rio imita o Reno.

          Publicado em 1943, (a nona edição é de 1987 da José Olympio) nele Viana Moog delineia esse Brasil do extremo sul, o país dos imigrantes que era, para muitos, desconhecido.

          Chegados no século anterior em busca de possibilidades de vida, o quê lhes era recusado no Velho Mundo, ainda nele tinham suas raízes e não ignoravam o conflito em que sua antiga pátria mergulhava. Mas as notícias que então chegavam, eram acenos de vitórias, reafirmações de algo em que, firmemente acreditavam.
 
          Estranho a tais verdades, para Geraldo restavam apenas as imagens. As que atravessavam os mares registrando a guerra – multidões compactas, automáticas, de braço levantado. Multidões ululantes; e as que tinha diante dos olhos, na praça de Blumental: vibrante, estentório, o grupo de jovens lhes repete o gesto e saúda em uníssono.
 
          E grasnam os pardais. Em vão, Geraldo procura distinguir no matraquear infernal, no ruído ensurdecedor que eles fazem, como se quizessem atordoar, apossar-se do ninho dos outros, um outro som, uma melodia, um chilreio, um pipio de outro pássaro. Então, ele pensa que os demais pássaros cantores têm que imigrar. O canário, o bem-te-vi, o sabiá, o pintassilgo, a cotovia, os artistas da selva não podem cantar onde há pardais.

domingo, 24 de dezembro de 1995

Os pardais. 1

          A república havia apenas se instalado e o Dr. Olimpio, Embaixador do Brasil em Viena, sob a neve de um mês de março, diz de suas intenções de levar pardais para o Rio Grande do Sul: Os pardais vienenses dão um chique à paisagem, um requinte [...]. E sob o som da Valsa dos Patinadores, toma chá e degusta uma fatia da torta Sacher num ritual diferente daquele que sempre havia sido o seu lá nas suas terras do sul do país o quê parecia imperdoável para Silva Jardim. Também personagem de Luiz Antonio de Assis Brasil, neste Pedra da memória (Mercado Aberto, 1994), ele observa, impiedoso: E agora você bebe chá e come torta... Você, um gaúcho macho.O Dr. Olimpio considera que o amigo está um tanto quanto amargo porque as tarefas que lhe concernem na Embaixada - isto de carimbar passaportes e frequentar bailes -  o entedia. E, saber que no Brasil, se luta pelos despojos da República o faz decidir-se a voltar.
         
          Enquanto sua mulher dá ordens para que sejam engradados os móveis e empacotada a baixela, a louça e a roupa de cama, ele manda fazer uma gaiola de dois metros por dois, cúbica, para conter uma centena de pardais. Com o imprevisto de ter um dono, eles fazem a longa viagem por terra e por mar até a liberdade dos campos que irão invadir e povoar, sem contudo, modificar-lhes os contornos em revoadas pelos campos, em ninhos pelas praças.

          O narrador de Pedra da memória diz que alegravam as cidades com seu canto altamente europeu. Presença que seu personagem quer transplantar para que aqueles índios habitantes dos pampas se tornem mais civilizados.
         
          Porque, na confeitaria iluminada, onde se misturam os sons da música de Straus e o tilintar das porcelanas, ele pode se permitir divagações: quando comparo isto com a selvageria dos nossos hábitos, com a ausência dos pardais, com os nossos barbudos revolucionários gaúchos, com as degolas, com os combates nas coxilhas empapadas de sangue...

          Mas os pequenos pássaros migrados não foram para os da terra, tão inocentes pois não souberam ver neles as propaladas qualidades. Assim, houve quem tentasse matá-los a tiros de chumbo, alegando que destruíam as colheitas e houve quem dissesse serem uma praga, a praga dos pardais.

          Mas, dono de muitas terras e de todos esses direitos e poderes que a riqueza outorga, o Dr. Olimpio podia, também atribuir-se razões: Um dia me agradecerão de joelhos, ao comparar os pardais com essas rudes aves do pampa....

          Foi cognominado, ele um republicano, o Rei dos pardais.