domingo, 29 de outubro de 1995

Confrontos. O espelho.


Em 1973, a Noguer de Barcelona, publicou El hombre que trasladaba las ciudades, um romance construído a partir das Crônicas da Conquista da América. Carlos Droguett, sem se afastar da verdade histórica contida nesse relato oficial, o refaz dando-lhe vida e criando uma das mais perfeitas e belas obras da Literatura do Continente. Uma expressão rara, como que feita somente de achados, um sapientíssimo uso dos recursos romanescos fazem dessa obra um impressionante itinerário onde predominam linhas sinuosas e repetitivas cujo avançar e recuar permite seja vislumbrado o universo desconhecido que, os espanhóis, cheios de sonhos e perdendo-se no tempo, quiseram conquistar.


A cidade de Barco foi fundada por Juan Nuñez de Prado, diz a Crônica da Conquista. Recebera essa incumbência do Vice-rei do Peru e, com duzentos homens, se lançara à aventura pelas terras do Continente. Ameaçado pelos espanhóis do Chile, Juan Nuñez de Prado muda o assento da cidade o que não ocorre sem as violências que são possíveis quando rege um Poder Absoluto, exercido em nome de Deus e do rei. Preparava-se Juan Nuñez de Prado para outra vez transferir a cidade de lugar quando chega Francisco de Aguirre para impedir essa mudança. O quarto capítulo de El hombre que trasladaba las ciudades se inicia com esta chegada, gênese dos sucessivos confrontos entre seu querer e o desses homens que já lá estavam numa aventura que justificavam no que acreditavam ser o desejo do rei, no que presumiam, ou fingiam crer, ser o de Deus.

Francisco de Aguirre, a mando da Coroa, chegara para dar voz de prisão a Juan Nuñez de Prado, o fundador da cidade. Chegara, inquirindo e diante dele, sem respostas, o capitão Guevara. Para enfrentá-lo, o padre Carvajal encontrou forças e razões e o acusado tirou palavras do fundo do coração para se explicar. Em torno desses três confrontos foi construído o quarto capítulo de El hombre que trasladaba las ciudades.
O vento soprou a noite inteira é a frase que o inicia, delineando algo do cenário em que os personagens irão se mover. Um cenário feito, sobretudo, de som e de imagens.
Ruídos de bosque, bramido de animais, relinchos de cavalo, ladrar de cães, ressoar de passos da sentinela no seu ir e vir diante da porta que guardava, o canto dos soldados e suas rápidas conversas são registrados pelo narrador ou percebidos pelos figurantes que povoam a primeira cena do capítulo: acampados perto do fogo, nas carretas, perto da cidade apenas começada ou já se esboroando, os soldados são surpreendidos pela chegada de Francisco de Aguirre.

As imagens se esboçam, então, a partir do olhar  que os soldados lançam para os borzeguins da sentinela que da luz passa para a sombra nos passos repetidos; ou, na direção das carretas ao pressentirem o perigo; e para o rosto dos índios essas feições sujas e desfiguradas, feitas sem pressa pela fome e pelas doenças.Principalmente, fixam esse momento efêmero em que o ginete de rosto distante e sem cor, com o braço levantado para o alto, passou bem perto, o cavalo galopando, os cascos a brilhar na noite, pulando sobre as chamas, para desaparecer entre as árvores do bosque.
O olhar que fixa o estático – as portas das casas fechadas, as janelas abertas, as tochas que piscavam – como que desenhando o espaço para a ação, será o dos cavalos que passam pelas ruas num trote vagaroso.
São rápidas pinceladas de um cenário que se completa com o aspecto do céu – tenebroso, apressado, coberto,  ou negro, carregado de água e a presença do vento, lúgubre e revolto - tornando-se delgado contra as árvores e contra o toldo das carretas.
Parte do cenário ou nele entrelaçado, o homem e seu desconforto. Os soldados, inertes, impassíveis, abandonados na solidão e inexpressividade da noite. Um se destaca do grupo para rir, outro para se erguer da roda perto do fogo; a sentinela ereta e sozinha, numa atitude hostil e irada.
Quietos, com as armas pousadas nos joelhos, suspiravam, dormitavam até os primeiros disparos e os primeiros medos, as primeiras interrogações. Até se erguer a voz do capitão diante dos que chegavam.E no cenário que atuam, o sussurro, o riso, o canto, os gritos, as desvanecentes imagens de um gesto, de um olhar, de uma expressão de medo ou de alegria, parecem somente alusões à presença dos que são conduzidos.
É quando Carlos Droguett mostra o seu domínio da técnica romanesca. Pretensamente privilegia o pensar e o sentir dos que podem erguer a voz; pretensamente, apenas delineia a presença dos índios e dos soldados. E, dominando o texto, muito claramente, a evidência de que, no Continente recém invadido, todos são, igualmente, donos dessa força e dessa fraqueza, marca patética dos que regidos ou não pelo silêncio, devem executar a vontade alheia.

domingo, 22 de outubro de 1995

Confrontos.O sonho renovado


Em 1973, a Noguer de Barcelona, publicou El hombre que trasladaba las ciudades, um romance construído a partir das Crônicas da Conquista da América. Carlos Droguett, sem se afastar da verdade histórica contida nesse relato oficial, o refaz dando-lhe vida e criando uma das mais perfeitas e belas obras da Literatura do Continente. Uma expressão rara, como que feita somente de achados, um sapientíssimo uso dos recursos romanescos fazem dessa obra um impressionante itinerário onde predominam linhas sinuosas e repetitivas cujo avançar e recuar permite seja vislumbrado o universo desconhecido que, os espanhóis, cheios de sonhos e perdendo-se no tempo, quiseram conquistar.


A cidade de Barco foi fundada por Juan Nuñez de Prado, diz a Crônica da Conquista. Recebera essa incumbência do Vice-rei do Peru e, com duzentos homens, se lançara à aventura pelas terras do Continente. Ameaçado pelos espanhóis do Chile, Juan Nuñez de Prado muda o assento da cidade o que não ocorre sem as violências que são possíveis quando rege um Poder Absoluto, exercido em nome de Deus e do rei. Preparava-se Juan Nuñez de Prado para outra vez transferir a cidade de lugar quando chega Francisco de Aguirre para impedir essa mudança. O quarto capítulo de El hombre que trasladaba las ciudades se inicia com esta chegada, gênese dos sucessivos confrontos entre seu querer e o desses homens que já lá estavam numa aventura que justificavam no que acreditavam ser o desejo do rei, no que presumiam, ou fingiam crer, ser o de Deus.


Enquanto acusa o capitão e governador da cidade em nome do Rei, Francisco de Aguirre, olha pela janela. Olha com curiosidade e torna a olhar, intrigado, as carretas. Respira a tranqüilidade que ele mesmo havia imaginado e olha, novamente, para as carretas, e para a rua que desaparecia ao longe.

Ao escutar as respostas do prisioneiro, eivadas todas das muitas razões que tivera para matar e destruir e, ao aceder ao diálogo, já fora influenciado o bastante para confessar que a cidade era muito bonita. À medida que ia escutando e se deixando convencer, reconheceu também que ela lhe agradava; conclui que se os acasos da vida assim o determinassem, os dois juntos, um dia, levantariam outras, mais longe, mais belas e perigosas.

Depois, quando decide a partida do prisioneiro, já não se domina e, gritando lhe diz que a cidade passa, a partir de então, a lhe pertencer e que, talvez, a leve embora. Juan, talvez cumpra teu sonho, diz, tornando evidente, para ambos, ter sido contaminado pela mesma febre de mudança que havia consumido àquele a quem acusava.

À espera, estão as carretas carregadas, imóveis. Francisco de Aguirre as vislumbra de longe, guardadas por suas sentinelas. Ao delas se aproximar, deixando atrás de si Juan Nuñez de Prado, já está submisso a esse sentimento de posse que seus gestos tornam evidentes: diante de cordas pendentes, alguma roupa, um par de botas velhas entre os eixos de uma carreta,  ele tudo acomoda: as cordas no seu lugar e as roupas, sentindo agrado em apalpar as madeiras e os objetos que guardavam.Sob a luz das tochas, pôde contá-las. Lamenta serem apenas sete. Passa os dedos na madeira de uma delas e a balança para conhecer sua força e sua resistência. Precisará de todas para a mudança que irá determinar. Ordena que ninguém se aproxime delas e quer saber se existem outras. Dissimula de seus filhos e do  capitão o quê já sabe ser sua vontade: levar a cidade para longe.

Procura um bom lugar para ela, havia-lhe dito Juan Nuñez de Prado, certo de que estava tão ligado à cidade quanto ele e que seu sonho agora  também lhe pertencia.
Também ele tinha certeza de que a levaria embora, carregada nas carretas, como já o havia feito Juan Nuñez de Prado ainda que, também como ele, por isso arriscasse a vida ou a liberdade.
Ao se atirar na cama para dormir, no sonho lhe aparecia a carreta cheia de ruas e praças e caminhos e parques, ele via tudo e sorria e compreendia, acomodando-se no sono.

domingo, 15 de outubro de 1995

Confrontos. A confissão.


A cidade de Barco foi fundada por Juan Nuñez de Prado, diz a Crônica da Conquista. Recebera essa incumbência do Vice-rei do Peru e, com duzentos homens, se lançara à aventura pelas terras do Continente. Ameaçado pelos espanhóis do Chile, Juan Nuñez de Prado muda o assento da cidade o que não ocorre sem as violências que são possíveis quando rege um Poder Absoluto, exercido em nome de Deus e do rei. Preparava-se Juan Nuñez de Prado para outra vez transferir a cidade de lugar quando chega Francisco de Aguirre para impedir essa mudança. O quarto capítulo de El hombre que trasladaba las ciudades se inicia com esta chegada, gênese dos sucessivos confrontos entre seu querer e o desses homens que já lá estavam numa aventura que justificavam no que acreditavam ser o desejo do rei, no que presumiam, ou fingiam crer, ser o de Deus.


Em 1973, a Noguer de Barcelona, publicou El hombre que trasladaba las ciudades, um romance construído a partir das Crônicas da Conquista da América. Carlos Droguett, sem se afastar da verdade histórica contida nesse relato oficial, o refaz dando-lhe vida e criando uma das mais perfeitas e belas obras da Literatura do Continente. Uma expressão rara, como que feita somente de achados, um sapientíssimo uso dos recursos romanescos fazem dessa obra um impressionante itinerário onde predominam linhas sinuosas e repetitivas cujo avançar e recuar permite seja vislumbrado o universo desconhecido que, os espanhóis, cheios de sonhos e perdendo-se no tempo, quiseram conquistar.


Envolto no vento, sob a luz das estrelas, meio adormecido no andar silencioso do cavalo, o viram chegar.
Francisco de Aguirre que o esperava, que o procurava, o reconheceu e seguido dos filhos, as bandeiras tremulando, as lanças levantadas, foi ao seu encontro. Juan Nuñez de Prado se deixa abraçar, recebe um beijo em cada face e o olhar de comiseração pelo seu aspecto doentio para se ver, logo, encerrado num aposento, as mãos e os pés amarrados.Levanta a voz, pedindo explicações e certezas pela ambigüidade desses atos que fazem com que seja recebido em meio a festas para, então, o transformarem em prisioneiro, inquirido de muitas mortes e destruições. Quer saber o que será dele.

Acusado – e as mortes sem motivo, e a justiça ou a vingança aplicada em mais de vinte prisioneiros e a cidade destruída muitas vezes – Juan Nuñez de Prado responde com palavras em que prevalecem a estranha paixão que o une à cidade que fundara e que irá se sobrepor a qualquer outro sentimento.

Uma confissão em que se despe das razões alheias – e do Rei e de Deus e da Espanha – para se mostrar o homem senhor de suas decisões e à mercê de si mesmo. Derrubei as muralhas e casas e edifícios, quebrei as asas dos anjos e os sonhos do padre Carvajal e as ilusões dos espanhóis acomodados e medrosos, ele diz e não recua diante dos verbos quebrar, odiar, matar, derrubar, despedaçar, não somente quando relacionados com bens materiais (as portas, os móveis, as roupas, as sacadas, os terraços) mas, também, quando se relacionam com a vida e o sentimento dos homens que ali queriam viver. Ações que justifica pelo medo, pela turbação que o dominam diante da beleza da cidade, erguendo-se, espalhando-se pelas planícies e pelas quebradas. E pelos sentimentos de amor e de ódio que o levavam a percorrer, nas noites, as ruas da cidade, a cavalo ou trazendo o animal pela rédea, numa peregrinação que fazia calar os seus soldados.

Então, acariciava as muralhas, seus capitéis e cornijas, sentindo com as mãos cada pedaço de madeira, tocando portas e janelas, abrindo-as e no interior, apalpando, ainda, as roupas, os móveis e a renda de um baldaquim.

E nada, tampouco a vida que nela existia – o uivar dos cães, o riso dos espanhóis ao redor de um bom fogo ou a sua tranqüila respiração no repouso do sono, o trote dos cavalos, o grito dos índios – tinha o poder de fazê-lo desistir da destruição à qual, uma e tantas vezes, a condenava. E sabe que ela será iminente e irreversível, nessa convicção inabalável que o faz dizer: uma e mil vezes o teria feito, até morrer, até fazê-la perfeita e enorme como desejava.

Palavras que provocam no seu interlocutor novas interrogações. Francisco de Aguirre as deseja respondidas, mais do que tudo, para si mesmo, contagiado que fora pela mesma louca paixão.

Paradoxalmente, a confissão que tanto desejara obter para justificar-lhe os atos passa a ter um outro significado: o de nortear seus passos. Eles serão iguais ou muito semelhantes aos passos daquele a quem buscara para condenar.

domingo, 8 de outubro de 1995

Confrontos. A coragem


Em 1973, a Noguer de Barcelona, publicou El hombre que trasladaba las ciudades, um romance construído a partir das Crônicas da Conquista da América. Carlos Droguett, sem se afastar da verdade histórica contida nesse relato oficial, o refaz dando-lhe vida e criando uma das mais perfeitas e belas obras da Literatura do Continente. Uma expressão rara, como que feita somente de achados, um sapientíssimo uso dos recursos romanescos fazem dessa obra um impressionante itinerário onde predominam linhas sinuosas e repetitivas cujo avançar e recuar permite seja vislumbrado o universo desconhecido que, os espanhóis, cheios de sonhos e perdendo-se no tempo, quiseram conquistar.


A cidade de Barco foi fundada por Juan Nuñez de Prado, diz a Crônica da Conquista. Recebera essa incumbência do Vice-rei do Peru e, com duzentos homens, se lançara à aventura pelas terras do Continente. Ameaçado pelos espanhóis do Chile, Juan Nuñez de Prado muda o assento da cidade o que não ocorre sem as violências que são possíveis quando rege um Poder Absoluto, exercido em nome de Deus e do rei. Preparava-se Juan Nuñez de Prado para outra vez transferir a cidade de lugar quando chega Francisco de Aguirre para impedir essa mudança. O quarto capítulo de El hombre que trasladaba las ciudades se inicia com esta chegada, gênese dos sucessivos confrontos entre seu querer e o desses homens que já lá estavam numa aventura que justificavam no que acreditavam ser o desejo do rei, no que presumiam, ou fingiam crer, ser o de Deus.


Francisco de Aguirre chegara em busca de um culpado. Perseguindo respostas – de quantas mortes era responsável Juan Nuñez de Prado, aquele que fora incumbido de fundar uma cidade – havia permitido ou ordenado que maltratassem o capelão. Amarrado, sem defesa, depois de ter sido golpeado, o padre Carvajal presumia o seu triste destino.

Quando, porém, Francisco de Aguirre o conduz ao cavalo e o ajuda a montar, devolvendo-lhe, por momentos, a dignidade, ele não o poupa. Se queres matar o governador não precisas justificar teu crime pois trazes cartas que lavam e limpam o sangue, com certeza, cartas arrancadas com enganos, mentiras e falsos testemunhos do Governador do Chile, do Vice-rei ou ainda da Audiência e da Coroa. Mas para que te desculpas, Senhor? Se vão matá-lo, faz-te credor e digno de teu crime e de tua infâmia, que será um crime grande e importante, tens que ser grande como ele e merecer também um enorme arrependimento.

Francisco de Aguirre, com palavras solenes e medidas, não recua, admitindo que não viera para matar mas que o fará se alguém tiver que ser assassinado. E insiste no que lhe interessa: encontrar Juan Nuñez de Prado.

O diálogo continua, parco. Um com as cordas ao redor do corpo, ferido o rosto, negando-se a responder; o outro, montado a cavalo, as botas bem cuidadas, a insistir.

Francisco de Aguirre, grita, baixa a voz, a eleva clara e aguda ou a mostra tranqüila, cruel e inocente, impassível, solidificada, misteriosa, como que pedindo desculpas. Acalma o sorriso e a respiração, recupera sua força e sua saúde e esse maldito sorriso mentiroso. Esporeia o cavalo e deixa transparecer no rosto, o rancor. Ameaça, trágico e teatral, que embora tenha de mandar para a degola ou para o garrote, para a forca os que a sua vontade se opõem, não permitirá a nova mudança da cidade.

O padre Carvajal ainda que ferido, humilhado, imóvel, preso nas cordas que o enlaçam sente-se forte para retrucar, argumentar, ironizar e troçar.

Afirma não ser verdade estar Juan Nuñez de Prado a fugir pois quem o deseja encontrar, o encontra; que sua presença é constante na cidade onde quer que seja. E, face às ameaças de Francisco de Aguirre, como se fingisse levá-lo a sério, responde com burlas.

A pergunta que se fizera a si mesmo – por que me bateram e me feriram se nada de ruim procuram, nem pretendem – será respondida, mais tarde por Francisco de Aguirre quando diz não gostar de frades e que ao encontrá-los os amortalha nos seus panos lúgubres.

O padre Carvajal, ao vislumbrar, de longe, a chegada de Juan Nuñez de Prado, acredita que tudo está bem e se deixa conduzir à prisão. E na prisão fica, esquecido, como os demais da expedição, por Juan Nuñez de Prado. Juan Núñez de Prado que sai da cidade preso e escoltado sem saber quem tivera medo e quem tivera coragem por ele.Sai prisioneiro – as mãos amarradas e o horizonte pela frente – para enfrentar a solidão de seu destino.

domingo, 1 de outubro de 1995

Confrontos. O temor


Em 1973, a Noguer de Barcelona, publicou El hombre que trasladaba las ciudades, um romance construído a partir das Crônicas da Conquista da América. Carlos Droguett, sem se afastar da verdade histórica contida nesse relato oficial, o refaz dando-lhe vida e criando uma das mais perfeitas e belas obras da Literatura do Continente. Uma expressão rara, como que feita somente de achados, um sapientíssimo uso dos recursos romanescos fazem dessa obra um impressionante itinerário onde predominam linhas sinuosas e repetitivas cujo avançar e recuar permite seja vislumbrado o universo desconhecido que, os espanhóis, cheios de sonhos e perdendo-se no tempo, quiseram conquistar.


A cidade de Barco foi fundada por Juan Nuñez de Prado, diz a Crônica da Conquista. Recebera essa incumbência do Vice-rei do Peru e, com duzentos homens, se lançara à aventura pelas terras do Continente. Ameaçado pelos espanhóis do Chile, Juan Nuñez de Prado muda o assento da cidade o que não ocorre sem as violências que são possíveis quando rege um Poder Absoluto, exercido em nome de Deus e do rei. Preparava-se Juan Nuñez de Prado para outra vez transferir a cidade de lugar quando chega Francisco de Aguirre para impedir essa mudança. O quarto capítulo de El hombre que trasladaba las ciudades se inicia com esta chegada, gênese dos sucessivos confrontos entre seu querer e o desses homens que já lá estavam numa aventura que justificavam no que acreditavam ser o desejo do rei, no que presumiam, ou fingiam crer, ser o de Deus.


É noite de vento e, no acampamento, os soldados dormitam ao redor do fogo e nas carretas.

Aos primeiros disparos levantam-se, seguram, tensos, as armas. O primeiro cavalo, sem cavaleiro, aparece, seguido de outros, montados por soldados que avançavam pelas ruas da cidade construída a meias, destruída a meias, iluminando-as com suas tochas.

Igualmente expectantes, os capitães de Juan Nuñez de Prado: Ardiles, já adivinhando quem são eles; Guevara, a espada na mão a interpelar os que chegam, caminha ao seu encontro e, segurando pela brida o cavalo de um deles, sacode-a para forçá-lo a desmontar.

O cavaleiro havia levantado a espada desembainhada. Depois, desceu as mãos até as rédeas onde estavam seguras as de Guevara e desmontou, rindo. Bateu, sem ódio no ombro de Guevara e tirando a viseira mostrou o rosto que era branco e loiro e cheio de vida e força e calor. Riu, por sua vez, Guevara, exibindo também o rosto mas, conservando a seriedade para examinar o interlocutor e as armas e os cavalos que havia ao seu redor.

Fortes são as razões de parte a parte e, lentamente, elas são expostas nas perguntas e respostas que se cruzam.O capitão Guevara se permite informar da expedição, seus motivos e suas agruras. Mas, o silenciar as vítimas que ela fez, não o livra de ter diante dos olhos todas as ruínas, todas as forcas, os gemidos, as cordas dos prisioneiros.

Francisco Aguirre, o capitão que chega para cobrar essas vítimas, inquire breve e secamente, conhecendo já as respostas, admirando-se, porém, com elas. Parecia ter uma criança pequena na voz, pedindo maravilhas e curto tempo, um curto atroz minuto para imaginá-las e acreditar nelas.E é, talvez, para se encontrar, para se salvar, mergulhado que está no terrível mundo do mais forte e mais desumano, que ri com alvoroço e com alvoroço se abraça na árvore sobre a qual estivera apoiado, como se ela fosse um amigo, um compadre. Ri, convulsivamente, buscando com as mãos folhas, flores, relâmpagos, perfumes, restos de debilidades e covardias, brisas leves, signos de bem-aventuranças, bênçãos, decoro e sonhos. Busca as amarras de uma realidade palpável e boa e a realidade adivinhada; suposta porque própria dos homens. E, então, aquela desejada: encontrar por fim um lugar.

Carlos Droguett fixa seus gestos e desvenda sentimentos não expressos nas palavras, mas, em lampejos que afloram à consciência e da, assim a esses personagens uma dimensão profundamente humana que dilui o estereótipo de herói ou de vilão de que se alimenta a história.

Essas vozes, que faz emergir da aventura da Conquista estabelecem, então, uma dialética apenas aparente, pois quer cheguem os ibéricos ao Novo Mundo em demanda de riquezas ou talvez, de paz, ao se enfrentarem, servem-se das mesmas práticas violentas, justificadas ou condenadas segundo os interesses em jogo.

E Guevara e Francisco de Aguirre, quiçá se acreditando em campos opostos, são capitães do Rei o que não os livra de medos e de enganos. Os idênticos medos e  enganos que fizeram a Conquista.