domingo, 20 de dezembro de 1992

Das razões

          Lope de Aguirre nasceu num vilarejo espanhol em 1508. De seu tio Julián ouvia contar do Novo Mundo que surgia e, logo, todos falavam dessa imensidão, de pronto, entreaberta pelas três naus espanholas.
 
          Havia passado dos vinte anos quando, numa balsa carregada de melões e marmelos desceu o Guadalquivir para chegar a Sevilha e daí se embarcar para o Novo Mundo.
 
          Filho mais novo, seria sempre na sua terra “o segundo”. E o Novo Mundo luzia nas palavras de seus próximos o induzindo a partir. 0 confessor da família, na crença de que o espanhol é um povo escolhido por Deus para preservar a sua verdade, recebendo dele a missão de cristianizar esses milhões de índios bárbaros; o tio, no sonho de aventuras e proezas, desse "elixir branco", provedor da eterna juventude, das virgens cor de canela correndo nuas pelas praias ao encontro dos conquistadores”; o padrinho, dono de moinhos, acreditando nesses espaços sem fim para semear e no trabalho dos índios destinados aos espanhóis, nesse ouro encontrado sem esforço; a mulher que o amava, prevendo para ele a imortalidade da fama.
 
          E parte Lope de Aguirre numa velha nau, no mês de maio de 1534. Eram duzentos a bordo, mais as ovelhas, os porcos, mais o azeite e o vinho.
 
          Poucos eram os que conheciam o mar. Muitas, foram as agruras que passaram porque o espaço de cada um, mal dava para dormir ou rezar; porque a água era escassa; sobretudo, porque o arrependimento de ter embarcado era grande.
 
          Mas, os sonhos de riquezas e de glórias eram maiores e puderam, os tripulantes e Lope de Aguirre, vencer a travessia.
 
          E, chegou o momento em que o céu ficou transparente. Bandos de pássaros apareceram e, longe, aproximando-se aos poucos, a silhueta das palmeiras e das rochas.
 
          Haviam chegado. A fantasia, a glória, a riqueza, a imposição da fé - razões dos outros - se diluíram, no entanto, diante do destino que aguardava Lope de Aguirre.
 
          Príncipe da liberdade o chamou Miguel Otero Silva, um dos mais importantes escritores da Venezuela, hoje. No seu belo romance Lope de Aguirre, príncipe de la libertad que a Seix Barral de Barcelona publicou em fevereiro de 1979 torna verdadeira a profecia de Juanita Garibay. Embora o amando, ela lhe havia dito: Vai para as Índias. Teu nome será mencionado muito tempo depois da vida de teus netos.

domingo, 13 de dezembro de 1992

Pedras, farpas e perdas

         Melancólico, triste, quase sempre como que desesperançado é o olhar de Celso Mauro Paciornik para o mundo. Mundo feito de tangíveis, próximos e, sabidamente, irreversíveis desacordos que só uns poucos sabem ver e, raros, os que podem transformar em matéria poética.
 
         Indagações do eterno, certezas inclementes sobre um futuro que, certamente, irá se refazer ao som de um gotejar de botas / e de esgotos. Permanência irrecusada na solidão.
 
         E, os poemas livres e indisciplinados, se fazem de agressões e ternuras: a palavra forte, o forte constatar da miserável mesmice que se perpetua, intocada, e se impõe no Continente.
 
         O dizer que se mascara em ironias, em sarcasmos mas não tenta esconder a dor de viver o que não impede o poeta de ser solidário ainda que fale de si mesmo.
         Algum Brasil se desenha, então em tênues mas reconhecíveis linhas: o Brasil dos brasileiros que do Oiapoque ao Chuí, cegos, suspiram diante da ilusão televisiva; o Brasil da tortura, da retórica sem sentido, das declarações mentirosas, dos impostos surrupiados.

         Angústias pessoais, porém, e sentir-se entre as desarmonias de que o mundo é cheio não desarvoram Celso Mauro Paciornik. Como síntese de um estar diante da vida, quatro verbos de ação - andar, pensar, fazer e perguntar - comandam “Inspiral”, o primeiro poema de seu livro Inversos tempos (São Paulo, Estação Liberdade, 1992). E, expressão de um querer preciso, a última estrofe do poema “Sagrada intolerância”: Quero ver pender / da estátua caolha e brega da Justiça / a chusma toda algoz de traficantes / de verbos, vidas, vontades e verdades / que reinventa o mundo à sua podre imagem / e semelhança / e das próprias fezes se envergonha / a ponto / de não sentir seu cheiro.
 
         Este querer que o levou à luta política e a pagar não pouco por ela nos tempos em que ver a realidade do país era condenável. E um crime sem perdão o desejar mudá-la.
 
         Agora, as palavras são permitidas. Em Celso Mauro Paciornik elas não estão livres de amargura que encontram algum alívio na troça e no lúdico. Mas propor-se a dizê-las e, buscando um interlocutor, publicá-las, mais do que “humana teimosia” é alimentar-se de uma esperança.

domingo, 6 de dezembro de 1992

O trágico e o lírico na voz de Pedro de Malas Artes

         Pedro de Malas Artes, engenhoso personagem que, em primeira pessoa conta suas incursões no mundo dos ricos e poderosos, interrompe, por vezes, a narrativa de suas aventuras para se deter em considerações sobre essa estrutura social em que vive, cujas mazelas são reforçadas pelos conselhos de sua mãe a voz do miserável submisso - e pelas concepções de mundo dos que tirando proveito dessa submissão não tem porque mudá-la.
 
         Ou, para, justamente, monologar sonhos de transformações que parecem jamais acontecer e para se desejar o demolidor daquilo que, por muito velho emperrava o alvorecer das alvoradas e querer que os que foram sufocados na lama voltem a respirar livres.

         Um trágico mundo se ergue de suas palavras. Não apenas porque se refere à fome e ao trabalho, quase sem ganho, dos que tem de se submeter à lei do que é dono das terras, do gado e do trabalho que pode oferecer. Mas, porque essa fome e esse trabalho enriquecem o outro. São eles que aumentam suas posses, tornando-se mais poderoso do que o representante da lei, da fé e da justiça, isto é, com o beneplácito e o apoio das Instituições.

         Como, no entanto, o narrador é uma das vítimas desse mundo planejadamente em desequilíbrio, suas palavras se nutrem dos seus próprios sofrimentos - que ele sabe ser também dos outros seus iguais - e não escondem a emoção.

         E, então, em meio à ironia e troças e corrosivas constatações, em meio a uma comicidade baseada no mais chão, surge um delicado lirismo que desabrocha, sobretudo, quando Pedro de Malas Artes é invadido pela lembrança de Margarida.
 

         Lembrança que chega como um consolo, como um alimento. Margarida é o “descanso” é o “lugar onde chegar”. E o seu dizer para falar nela é como um poema.
 
         Singelas as expressões: e sol, e lua, e mar e vento. Tempo menino sem antes nem depois, tempo único que se prolonga pela vida inteira.

         Desprovidas de adorno, as frases que procuram em síntese perfeita dar conta desse amor paixão: Fechei os olhos e me confiei à doçura da pele de Margarida. No aconchego de Margarida, os limites se diluem. Eu com Margarida dissolve-se a diferença de eu e ela para alçar vôo ao que é maior do que eu e ela, feito de eu e ela, sem anular eu e Margarida, como um abraço em que se vive aumentado, aumentando quem se abraça, eu com Margarida ilimitadamente, os limites abolidos, eu perdoado, eu alevantado, eu nadando nas ondas do corpo de Margarida, marulho de mar e margem garrida.

         E, nascido da ingenuidade popular, Pedro de Malas Artes que Donaldo Schüller tornou a criar, sagaz e emocionado, se enriqueceu.
Pedro de Malas Artes (Editora Movimento, Porto Alegre, 1992) é sua trágica e lírica saga.