domingo, 14 de junho de 1992

Fugitivos da fome II


Prendeste a todos os que desejavam ficar, cuidar de suas casas, regar suas árvores, tu somente queres homens a cavalo, agarrados nos arcabuzes e nos punhais, somente queres soldados [...], 

disse com valentia e desespero. Não queria partir e lutar outra vez. Desejava, como as árvores, tomar raízes, mas devia desfazer o que fora feito para tornar a construir adiante. Obedecer às ordens do capitão.

      Juan Nuñez de Prado, o capitão, fundara a cidade de Barco em 1570 para o rei da Espanha. Querendo defendê-la das ambições de Pedro de Valdivia que do Chile a ameaçava, a desfaz e nos ombros dos índios e no bojo das carretas a leva para um novo lugar.

      Dos duzentos homens que estão sob suas ordens, muitos não querem segui-lo. Haviam sido tirado dos cárceres de Arequipa, talvez. Talvez fossem aqueles famintos sem entranhas que, a conselho do Vice-rei do Peru, fora Juan Nuñez de Prado buscar para sua expedição. Ou, talvez fossem os cavaleiros empobrecidos e sonhadores, amaciados pela miséria, perseguidos e solitários que estavam dispostos a novas aventuras Continente a dentro.

      Entre eles, no entanto, os que também havendo fundado a cidade nela queriam se fixar, esquecendo ou ignorando os sonhos de conquistar terras desconhecidas que o Vice-rei alimentava. Então, apegavam-se à terra - do outro lado do oceano jamais a haviam possuído - e aos frutos que essa terra havia dado. São os que choram ao ver os jardins pisados pelos cavalos; são os que, ao receber a ordem de tudo desfazer e continuar a viagem, se prendem às árvores que haviam plantado e juram que não irão partir. Por isso são enforcados.

      Outros se apegam às madeiras das casas construídas por suas mãos. A ordem de destruí-las, ainda que para outra vez erguê-las em novo assento, lhes era impossível cumprir. Assim foi para Pedro Albañez que recusa, horrorizado, a possibilidade de partir deixando para trás os seus bens: Salvar-me deixando minhas madeiras, meus móveis? ele pergunta. E se nega a partir e morre sob a chuva de balas que os soldados obedientes lhe destinam.  E sob o punhal morre o jovem soldado que fora preso porque tampouco admitia abandonar o que fizera. Amarrado era como se apenas esperasse ficar livre para tornar às suas flores.

      São espanhóis que a Espanha havia embarcado para o Novo Mundo e condenado a trabalhar para a sua glória. Mas eles desejavam, apenas, ter uma casa com vasos de flores nas sacadas, laranjeiras, limoeiros, amêndoas e pêssegos, romarinho e rosas porque ali é que desejavam viver.

      Um dos capitães da conquista, que se acredita capaz de levar o mundo sobre os ombros e para isso paga o preço de ser injusto, mau e assassino, não pode entender esses homens (tropa de ladrões e de assassinos) vindos da Espanha para conquistar as terras do Novo Mundo que não sabem abandonar virilmente um vaso de flores e umas dúzias de frutas perfumadas.

      Assim os que desejavam se fixar e construir seu mundo, opondo-se aos interesses dos que se escudavam nas, então, indiscutíveis verdades do rei e do clero, foram destruídos.

E, igualmente, destruídos ou pelas vicissitudes ou por traições ou pelas mesmas verdades que defendiam, foram os que executavam as ordens.

      Um personagem do romance, em certo momento dirá: que a Espanha faminta e iluminada os sacudiu para longe como um punhado de piolhos.E famintos e despojados eles, os que ordenavam e os que obedeciam chegaram ao Continente. Em nome da Espanha e da religião foram esmagados.

 

Num dia de maio, Carlos Droguett tira essas sombras do esquecimento das crônicas oficiais e as traz para El hombre que transladaba las ciudades (Noguer, 1973), o mais belo e profundo romance escrito neste século.

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário