domingo, 28 de junho de 1992

Os sete caciques II

 
          Então o arcabuzeiro, em vez de afastá-la ou impedí-la, lhe segurou o índio pelos ombros, quase com suavidade e já teve nas mãos a cortada cabeça que ela lhe estendia num gesto de enojado horror e de arrependimento. CarlosDroguett. Supay el cristiano
 
 
           Em 1967, pela Zig-Zag de Santiago, era publicado Supay el cristiano, romance de seis capítulos que se inicia mostrando Pero Sancho de Hoz imerso em profunda tristeza e perfeito mutismo, resultantes dos dias que passou nas prisões de Lima.

          Segundo a historiadora Carmen Pumar Martínez, no seu livro Pedro de Valdivia fundador do Chile (Madrid, Anaya, 1988), ele havia chegado da Espanha trazendo consigo uma designação real para conquistar o Chile, quando Francisco Pizarro já havia outorgado a empresa a Pedro de Valdivia. Para não contrariar a vontade real, o governador do Peru decidiu que iriam para a conquista juntos e que se repartiriam as despesas e os lucros advindos da aventura

           Pero Sancho de Hoz, no entanto, não consegue cumprir o estipulado  - deveria se encontrar com Pedro de Valdivia quatro meses mais tarde, levando cinqüenta cavalos e duzentas couraças - e, então, trama a morte do sócio e rival. A tentativa, porém, fracassa e acusado por aquele que teria sido sua vítima de ter faltado às promessas é eliminado da sociedade e mantido, conforme seu desejo, como soldado raso, sem armas, nas hostes do conquistador.

          Mas, não desistindo de eliminar Pedro de Valdivia, participa de nova conjura que igualmente fracassa e é preso com grilhões. E assim estava quando a recém fundada Santiago é atacada pelos índios. Ainda que acorrentado, luta ferozmente e assim, pelo valor demonstrado recebe, de volta, a liberdade.

           Diz o crítico Teobaldo Noriega (La novelística de Carlos Droguett: aventura y compromisso, Madrid, Pliegos, 1983) ser Pero Sancho de Hoz o eixo central de Supay el cristiano e de 100 gotas de sangre e docientas de sudor, também publicado pela Zig-Zag, em 1961 e que juntamente com El hombre que trasladaba las ciudades compõe a trilogia da conquista, de Carlos Droguett.

           Nas primeiras páginas de Supay el cristiano, Pero Sancho de Hoz domina o primeiro capítulo, “El hombre más triste” em que premedita e tenta o assassinato de Pedro de Valdivia e, brevemente, aparece no último capítulo quando se defende dos invasores da cidade.Entre esses dois fatos de sua vida, o romance se constrói em episódios da conquista do Chile: a exploração da mina de ouro Marga-Marga pelos espanhóis, a construção de um barco na costa de Concón, a luta na qual é preso o cacique Michimalongo, a prisão dos sete caciques, a prisão e a morte de um traidor espanhol, o ataque dos indígenas à cidade e a morte dos caciques.

           Uma ficção que teve sua gênese no momento em que o escritor, preparando uma tese com a qual deveria terminar o curso de Direito, se debruçava sobre os textos dos cronistas e dos historiadores.Desses textos é que emergem os episódios e os personagens do romance. Como os personagens vivem esses episódios e como os sentem é que a crônica da conquista é reescrita em textos ficcionais exemplares como o que descreve a execução dos sete caciques presos como reféns por Pedro de Valdivia.Encurralados pelos indígenas na cidade que se incendiava, os espanhóis temem estar perdidos mas querem resistir e repelir os atacantes. Então, se levanta a voz de Inés Suárez, a única mulher presente nessa conquista, partilhando o destino e o leito de Pedro de Valdivia, para ordenar que os caciques sejam mortos.
 
           O texto de Carlos Droguett é construído em rápidos diálogos entre Inés Suárez e o tenente Alonzo Monroy e longas descrições do combate.Na tensão que se estabelece entre a mulher que manda executar prisioneiros inocentes e o militar que busca ser justo se desenham os caracteres.Inés Suárez, que se move entre o medo, o desprezo, a raiva, a insegurança, a tristeza para se deixar vencer pela insana coragem da qual não está isento o arrependimento nem o nojo; Alonzo de Monroy, tranqüilo, mergulhado em profunda solidão junto ao silêncio dos demais espanhóis, tem a certeza daquele que se apóia em normas. A dúvida o leva a baixar a voz para reafirmar a sua negação em matar os caciques - são reféns - e mais uma vez reafirmar com firmeza - são reféns.

          Ao redor de seus desejos - o de matar para se salvar expresso por Inés Suárez, o de poupar os que estão presos e lutar contra os que atacam reafirmado por Alonzo de Monroy - a realidade das flechas e da fumaça, dominando a praça a  se oferecer aos olhas de um narrador que descrevendo o sofrimento dos soldados e dos cavalos presos, mostra uma visão da conquista claramente comprometida com o homem que a realizou ou que a sofreu.

          O terror se instala entre os índios domesticados que procuravam refúgio entre as patas dos cavalos; a dor se instala nos cavalos que, amarrados, não podem fugir das flechas e do calor do incêndio; o sopor, a sede o cansaço aniquila os soldados. E os caciques presos estavam aí, como uma única trouxa, unidos todos por uma só corrente. Eram fortes, robustos, pareciam tranqüilos, estavam descansados, eram os únicos que não estavam sofrendo.

          Inés Suárez olhou para eles que imóveis permaneciam e indiferentes aos gritos e aos gestos que os rodeavam. Ignoravam que, um a um, seriam decapitados e que suas cabeças seriam jogadas sobre os atacantes da cidade que entre alaridos e correrias fugiam do horror e do desespero.
           Na cidade espanhola, os sete corpos dos sete caciques, sem cabeça, se amontoavam sobre as correntes que ainda os mantinham unidos.

domingo, 21 de junho de 1992

Os sete caciques 1


Sete príncipes vieram parlamentar.
(Do Canto General de Pablo Neruda)

Chegaram na cidade dos brancos em missão de paz e eram sete. Pedro de Valdivia havia fundado a cidade em fevereiro de 1541. Logo os soldados construíram as casas de madeira, barro e palha. Os índios ajudavam na construção enquanto esperavam que fosse crescendo o que haviam plantado. Então, colheriam o que a terra dera e se rebelariam contra o invasor. Pedro de Vadívia presumiu que assim iria acontecer e se antecipou, mandando seus homens arrancar os alimentos que encontrassem. Foi tanto o que roubaram que poderia lhes garantir o sustento por mais de dois anos. Mas, isso não bastou para tranqüilizá-lo - os índios já se haviam revoltado duas vezes - e Pedro de Valdivia pediu aos caciques índios que fossem a Santiago para parlamentar. Foi, assim, que os prendeu como reféns. E suspeitando que a maior concentração de índios para o ataque estivesse no sul, decidiu desbaratá-la, partindo a seu encontro com noventa homens. Mal se afastara quando se efetuou o ataque à cidade. Sob o comando do tenente Alonzo Monroy, aos cinqüenta homens que haviam ficado só lhes cabia resistir a esse assalto, sem tréguas, de milhares de índios. Perdiam terreno, a cidade estava em chamas, mas, ainda assim tiveram dúvidas em cumprir a ordem de Inés Suárez, companheira de Pedro de Valdivia que pedia que os caciques fossem mortos. Diz a historiadora Carmen Pumar Martínez em Pedro de Valdivia, fundador de Chile (Madrid, Anaya, 1988), que o dia ainda não tinha amanhecido quando o soldado que recebera a ordem, aterrorizado talvez pela injustiça que deveria praticar, perguntou: Senhora, de que modo devo matá-los .Inés Suárez, então, respondeu: Assim.  Desembainhando a espada matou os caciques um a um. Em seu Canto Geral, Pablo Neruda a descreve: Toda / encharcada de vísceras, uivando / Inés Suárez, a soldadeira / segura os pescoços imperiais / com seus joelhos de infernal harpia. E, Eduardo Galeano, em Los nacimientos, diz que fora a primeira a chegar quando Pedro de Valdivia, em Cusco, recrutava gente para a conquista do Chile. Perto dele atravessara os desertos e suportara a fome e a sede e com ele dormira.Quando os incêndios e a luta destruíam Santiago e ameaçava a vida dos espanhóis, Inés Suárez condenou à morte os sete caciques índios.De nada eram culpados. Presos estavam somente porque haviam acreditado em parlamentar.
No Continente, era domingo, 11 de setembro de 1541.

domingo, 14 de junho de 1992

Fugitivos da fome II


Prendeste a todos os que desejavam ficar, cuidar de suas casas, regar suas árvores, tu somente queres homens a cavalo, agarrados nos arcabuzes e nos punhais, somente queres soldados [...], 

disse com valentia e desespero. Não queria partir e lutar outra vez. Desejava, como as árvores, tomar raízes, mas devia desfazer o que fora feito para tornar a construir adiante. Obedecer às ordens do capitão.

      Juan Nuñez de Prado, o capitão, fundara a cidade de Barco em 1570 para o rei da Espanha. Querendo defendê-la das ambições de Pedro de Valdivia que do Chile a ameaçava, a desfaz e nos ombros dos índios e no bojo das carretas a leva para um novo lugar.

      Dos duzentos homens que estão sob suas ordens, muitos não querem segui-lo. Haviam sido tirado dos cárceres de Arequipa, talvez. Talvez fossem aqueles famintos sem entranhas que, a conselho do Vice-rei do Peru, fora Juan Nuñez de Prado buscar para sua expedição. Ou, talvez fossem os cavaleiros empobrecidos e sonhadores, amaciados pela miséria, perseguidos e solitários que estavam dispostos a novas aventuras Continente a dentro.

      Entre eles, no entanto, os que também havendo fundado a cidade nela queriam se fixar, esquecendo ou ignorando os sonhos de conquistar terras desconhecidas que o Vice-rei alimentava. Então, apegavam-se à terra - do outro lado do oceano jamais a haviam possuído - e aos frutos que essa terra havia dado. São os que choram ao ver os jardins pisados pelos cavalos; são os que, ao receber a ordem de tudo desfazer e continuar a viagem, se prendem às árvores que haviam plantado e juram que não irão partir. Por isso são enforcados.

      Outros se apegam às madeiras das casas construídas por suas mãos. A ordem de destruí-las, ainda que para outra vez erguê-las em novo assento, lhes era impossível cumprir. Assim foi para Pedro Albañez que recusa, horrorizado, a possibilidade de partir deixando para trás os seus bens: Salvar-me deixando minhas madeiras, meus móveis? ele pergunta. E se nega a partir e morre sob a chuva de balas que os soldados obedientes lhe destinam.  E sob o punhal morre o jovem soldado que fora preso porque tampouco admitia abandonar o que fizera. Amarrado era como se apenas esperasse ficar livre para tornar às suas flores.

      São espanhóis que a Espanha havia embarcado para o Novo Mundo e condenado a trabalhar para a sua glória. Mas eles desejavam, apenas, ter uma casa com vasos de flores nas sacadas, laranjeiras, limoeiros, amêndoas e pêssegos, romarinho e rosas porque ali é que desejavam viver.

      Um dos capitães da conquista, que se acredita capaz de levar o mundo sobre os ombros e para isso paga o preço de ser injusto, mau e assassino, não pode entender esses homens (tropa de ladrões e de assassinos) vindos da Espanha para conquistar as terras do Novo Mundo que não sabem abandonar virilmente um vaso de flores e umas dúzias de frutas perfumadas.

      Assim os que desejavam se fixar e construir seu mundo, opondo-se aos interesses dos que se escudavam nas, então, indiscutíveis verdades do rei e do clero, foram destruídos.

E, igualmente, destruídos ou pelas vicissitudes ou por traições ou pelas mesmas verdades que defendiam, foram os que executavam as ordens.

      Um personagem do romance, em certo momento dirá: que a Espanha faminta e iluminada os sacudiu para longe como um punhado de piolhos.E famintos e despojados eles, os que ordenavam e os que obedeciam chegaram ao Continente. Em nome da Espanha e da religião foram esmagados.

 

Num dia de maio, Carlos Droguett tira essas sombras do esquecimento das crônicas oficiais e as traz para El hombre que transladaba las ciudades (Noguer, 1973), o mais belo e profundo romance escrito neste século.

 

domingo, 7 de junho de 1992

Fugitivos da fome I


Não saíram dos portos do sul para por as mãos do povo no saque e na morte .Pablo Neruda.

          No Canto III do Canto General a chegada dos espanhóis, com seus ódios e ambições, é cantada, sem complacências, por Pablo Neruda. Os carniceiros arrasaram as ilhas, diz o primeiro verso desse Canto III que tem por título “Os conquistadores”. E são esses conquistadores que chegam às ilhas, em 1493, que o poeta chama de carniceiros.
          E logo foi o sangue e a cinza é o verso que inicia o segundo poema: síntese do que, página após página será contado no Canto general. Punhais e fogueiras,determinando posses, apagando um passado de séculos.
 
          No México, na Colômbia, no Panamá, no Peru, no Chile foram chegando os barcos e os personagens que Pablo Neruda chama de chacal podre, cruel porco da Extremadura, capitão intruso, vertebrados sanguinários unidos para se repartir a terra e seus frutos.
 
          O terror se instalou então no Continente, repetindo o Velho Mundo onde viviam não somente os que eram amos.

          Neruda lembra que os conquistadores, esses Arias, Reyes, Rojas, Maldonados que povoavam os barcos também de medos e incertezas, eram os filhos do desamparo castelhano / conhecedores da fome no inverno / e dos piolhos das hospedarias. Os que se aventuraram nas intermináveis viagens em oceanos desconhecidos para fugir das misérias antigas.

          Deserdados, eles são. Pablo Neruda imagina a sina que lhes seria destinada se continuassem a viver naquelas terras áridas que não lhes pertenciam e onde deveriam ser submissos à mãe, ao irmão, ao Juiz, ao Padre / aos inquisidores, ao inferno, à Peste.
 
          E imagina os rostos barbados, as caras hirsutas, as mãos rotas no trabalho e os braços de ferreiro. Esses olhos de criança olhando o Continente que se aproxima e que eles querem de terras verdes, liberdades, correntes partidas, fugitivos que são do látego feudal, do calabouço, das prisões cheias de excrementos.
 
          Atravessaram os mares, sofreram os rigores do sol e das incertezas e das separações, das cruéis violências e bárbaras destruições apenas para reencontrar um Novo Mundo.   Mas ele já havia sido dividido em castas. Os pobres do mundo, a inumerável e castigada / família dos pobres do mundo, dos versos de Neruda, se perpetuaram, então, no Continente.