Num pequeno
espaço do Continente, aprisionado na praça, na igreja, no casarão da vila,
irrompem as paixões. A que se origina da posse, a que se nutre da privação, a
que se alimenta de si mesma.
Bernardo,
Ramiro. Presos à mulher que se entrega ou se oferece, tolhidos pela pobreza ou
pelos votos formulados, são figuras à mercê do desejo feminino.
Presa
pela lei dos homens na grande casa, Camila pode estender o seu olhar até as
torres da igreja, até as árvores da praça. As paredes que a rodeiam e prendem
não amuralham, no entanto, seus sentimentos e seus ímpetos. Querendo encontrar
a si mesma, tomou posse do corpo e da alma de Bernardo. Seduziu aquele que viera
para seduzi-la com artes que somente o instinto conduziu e, sobre ele, reinou
soberana, reduzindo à nada o desprezo com que ele poderia magoá-la. Tendo-se
encontrado, conhecendo-se inteira, perfeita, vibrátil, perde pelo amante o
interesse, condenando-o, assim, a um vazio enlouquecido.
Volta-se,
então, para Ramiro, inatingível porque submisso às leis do celibato
eclesiástico. Percebe-lhe as dúvidas e quer vencê-las. Caminha para ele,
ignorando, como já o fizera antes, toda
e qualquer lei.
E,
na manhã nascida de um céu escuro e nevoento, numa vila do extremo sul
do Brasil, para iluminar o ato final de uma história que se teatraliza num
ambiente sagrado, palco de uma tragédia sem espectadores, se inscreve a manhã
transfigurada.
Para
ela avançam, sem o saber, Camila e o padre Ramiro.
Vestida
de branco, coroada de flores, o rosto radiante, antecipando a entrega, Camila
ousa entrar na igreja e se aproximar do altar. Verdes os paramentos, Ramiro
chega para oficiar a missa. Petrificado pela surpresa, não pode impedir o
punhal de Bernardo que faz Camila gritar e, lentamente, cair, afundando-se
no rodado do vestido que a recebe como um cálice.
Rosto de donzela, ao atravessar a praça e entrar na
igreja, já era senhora de prazeres e de dores. Ousada
fora, na adolescência, entregando-se, sob o teto do pai, a um peão da estância.
E, outra vez, ao seduzir o escrivão/sacristão eclesiástico que lhe fora
entregar o pedido de anulação de
casamento feito pelo marido que não a aceitara já mulher. Ansiou ir além
e pensou o amor como o lera em versos e como o pressentira. Materializou-o no
Padre Ramiro quando este, para dar-lhe consolo espiritual pelo cativeiro
imposto, fora lhe bater à porta.
Do
sacristão e do padre e de Camila é que se ocupará o narrador para dizer dessa
manhã em que, mais uma vez ousando doidamente, Camila sai em busca do que
deseja, o amor do padre Ramiro. Minuciosamente acompanha – gestos, palavras,
pensamentos - a submissão a que se entregam: ciúme, dever, paixão. E o sentir e
o sofrer de cada um deles não se escondem
ao dono do relato que ora se fixa em Camila, ora em Bernardo, ora em
Ramiro para revelar os sentimentos que se instalam, se insinuam nos corações
masculinos e os anseios que florescem no corpo de Camila.
A
vila apenas nominada – e suas ruas de casario baixo de porta e janela e sua
praça – a alcova, a igreja deserta.
Cenários que se perdem diante da expressão desse imperfeito triângulo amoroso
em que domina a mulher. Os homens temem. Um, ao querer dela a posse; o outro,
ao querer dela fugir. Camila, mulher no tempo dos preconceitos e leis dos
homens, apenas quis viver.
A
vida dos personagens inesquecíveis lhe concedeu Luiz Antonio de Assis Brasil ao
publicar, em 1983, pela L&PM de Porto Alegre, Manhã transfigurada,
um dos mais belos romances da ficção brasileira.


