domingo, 26 de maio de 1991

Camila

           Num pequeno espaço do Continente, aprisionado na praça, na igreja, no casarão da vila, irrompem as paixões. A que se origina da posse, a que se nutre da privação, a que se alimenta de si mesma.

            Bernardo, Ramiro. Presos à mulher que se entrega ou se oferece, tolhidos pela pobreza ou pelos votos formulados, são figuras à mercê do desejo feminino.

            Presa pela lei dos homens na grande casa, Camila pode estender o seu olhar até as torres da igreja, até as árvores da praça. As paredes que a rodeiam e prendem não amuralham, no entanto, seus sentimentos e seus ímpetos. Querendo encontrar a si mesma, tomou posse do corpo e da alma de Bernardo. Seduziu aquele que viera para seduzi-la com artes que somente o instinto conduziu e, sobre ele, reinou soberana, reduzindo à nada o desprezo com que ele poderia magoá-la. Tendo-se encontrado, conhecendo-se inteira, perfeita, vibrátil, perde pelo amante o interesse, condenando-o, assim, a um vazio enlouquecido.

            Volta-se, então, para Ramiro, inatingível porque submisso às leis do celibato eclesiástico. Percebe-lhe as dúvidas e quer vencê-las. Caminha para ele, ignorando, como já o fizera antes,  toda e qualquer lei.

            E, na manhã nascida de um céu escuro e nevoento, numa vila do extremo sul do Brasil, para iluminar o ato final de uma história que se teatraliza num ambiente sagrado, palco de uma tragédia sem espectadores, se inscreve a manhã transfigurada.

            Para ela avançam, sem o saber, Camila e o padre Ramiro.

            Vestida de branco, coroada de flores, o rosto radiante, antecipando a entrega, Camila ousa entrar na igreja e se aproximar do altar. Verdes os paramentos, Ramiro chega para oficiar a missa. Petrificado pela surpresa, não pode impedir o punhal de Bernardo que faz Camila gritar e, lentamente, cair, afundando-se no rodado do vestido que a recebe como um cálice.

            Rosto de donzela, ao atravessar a praça e entrar na igreja, já era senhora de prazeres e de dores. Ousada fora, na adolescência, entregando-se, sob o teto do pai, a um peão da estância. E, outra vez, ao seduzir o escrivão/sacristão eclesiástico que lhe fora entregar o pedido de anulação de  casamento feito pelo marido que não a aceitara já mulher. Ansiou ir além e pensou o amor como o lera em versos e como o pressentira. Materializou-o no Padre Ramiro quando este, para dar-lhe consolo espiritual pelo cativeiro imposto, fora lhe bater à porta.

            Do sacristão e do padre e de Camila é que se ocupará o narrador para dizer dessa manhã em que, mais uma vez ousando doidamente, Camila sai em busca do que deseja, o amor do padre Ramiro. Minuciosamente acompanha – gestos, palavras, pensamentos - a submissão a que se entregam: ciúme, dever, paixão. E o sentir e o sofrer de cada um deles não se escondem  ao dono do relato que ora se fixa em Camila, ora em Bernardo, ora em Ramiro para revelar os sentimentos que se instalam, se insinuam nos corações masculinos e os anseios que florescem no corpo de Camila.

            A vila apenas nominada – e suas ruas de casario baixo de porta e janela e sua praça – a alcova,  a igreja deserta. Cenários que se perdem diante da expressão desse imperfeito triângulo amoroso em que domina a mulher. Os homens temem. Um, ao querer dela a posse; o outro, ao querer dela fugir. Camila, mulher no tempo dos preconceitos e leis dos homens, apenas quis viver.

            A vida dos personagens inesquecíveis lhe concedeu Luiz Antonio de Assis Brasil ao publicar, em 1983, pela L&PM de Porto Alegre, Manhã transfigurada, um dos mais belos romances da ficção brasileira.

domingo, 19 de maio de 1991

Lição de crítica (2)


            Não isenta de perigos, para um crítico, é a aventura de se aproximar de uma obra já consagrada pelos que o antecederam cujas palavras, muitas vezes, se cristalizam e passam a ter o estatuto das verdades intocáveis.

            A confessada e perene paixão de Mario Vargas Lhosa por Madame Bovary  o conduziu, no entanto,  seguro, nesse ensaio sobre o romance de Flaubert, certamente, um dos melhores que he foram dedicados.

            Mario Vargas Lhosa em La orgia perpetua (Seix Barral, Barcelona, 1975), não ignorou a bibliografia existente e se serviu dela para avançar nos enunciados críticos que se originam, principalmente, de sua longa e renovada relação com a obra, de uma perspicácia incomum e de um conhecimento da criação literária que são próprios de quem é mestre naquilo que faz

            Suas fontes – Maurice Nadeau, Enie Starkie, Albert Thibaudet, Jean Paul Sartre, Renée Dumensil, Saint Beuve, Ernest Robert Curtius, Charles Baudelaire – quer as aceite ou discuta, significam a etapa de um caminho que o seu ensaio, com brilhantismo, alongou. E’um trabalho que se inscreve num dos princípios básicos da pesquisa científica: o de respeitar o caminho existente e avançar, construindo espaço,  para que outros pesquisadores possam seguir além.

            A seriedade metodológica e a composição clara que o aproximam dos melhores trabalhos acadêmicos não se perdem na espontaneidade e beleza de seu texto, digno, neste ensaio do grande romancista que é.

            Após ter, na primeira parte, se estendido sobre o seu relacionamento com Madame Bavary,  na segunda, irá se deter em questões ligadas à gênese da obra e à detalhes de sua composição e, na terceira,  a situará como o primeiro romance moderno. Afirmativa que justifica enumerando inovações – narrativa centrada no anti-herói, mudança do narrador – inovações estas, presentes nos romances que se lhe seguiram. Assim,  ele não pode se impedir de comparar a qualidade da obra que analisa com a Literatura produzida nos dias de hoje: ou submissa ao êxito, ao dinheiro ou às migalhas do poder que o Estado dispensa aos intelectuais dóceis. Uma Literatura dos “ best sellers            do mundo capitalista ou a Literatura patrioteira e oficial do mundo socialista. Triturada, então, pela demanda da oferta e da procura da sociedade industrial ou pelas honrarias e chantagens do Estado-patrão, a Literatura, privada  da sua principal virtude, o questionamento crítico, se torna uma inofensiva diversão.

            Embora maniqueístas e, de certa maneira, afastadas do mapa do Continente, essas observações de Mario Vargas Lhosa não deixam de ser válidas. Embora nem sempre seja possível, em se tratando da América Latina, falar em sociedade industrializada, na grande maioria das vezes, é à sombra do Poder que se refugiam os escritores. Em troca de benesses, oferecem sua liberdade de expressão, seu direito de ver e de criticar.

            Assim, ainda que as palavras de Mario Vargas Lhosa possam ser, então reveladoras dos conhecidos desentendimentos que passaram a existir entre ele e alguns escritores latino-americanos, as questões que levanta são necessárias num Continente onde o preço dos homens e de suas almas, é, freqüentemente, tão pequeno.

domingo, 5 de maio de 1991

Lição de crítica (1)

            Sob o sugestivo título de La orgia perpetua, foi publicado em abril de 1975, pela Seix Barral de Barcelona, um longo ensaio sobre Flaubert e Madame Bovary. Seu autor, um dos mais representativos escritores do Continente: Mario Vargas Lhosa.

            Doze anos se haviam passado desde que o romance La ciudad y los perros lhe conferira notoriedade internacional, abrindo caminho para os que se lhe seguiram: La casa verde, Los cachorros, Conversación en la Catedral,  Pantaleón y las visitadoras.

            É, então, com seu conhecimento d e escritor ficcional e de ensaísta que já demonstrara o seu talento no estudo García Márquez: historia de um deicidio  que ele se aproxima de Gustave Flaubert. Uma aproximação que a bibliografia existente – imensa e, muitas vezes, respeitável - não desencorajou.

            La orgia perpetua, título da frase de Gustave Flaubert que aparece, em epígrafe, no livro – A única maneira de suportar a existência é atordoar-se na Literatura como numa orgia perpétua – é um ensaio no qual se aliam as qualidades de romancista e as qualidades críticas, acrescidas de uma rigorosa metodologia e de uma ampla visão do fazer literário.

            No entender de Vargas Lhosa, os críticos de todos os tempos utilizaram três perspectivas para o estudo de uma obra: a subjetiva, a objetiva de pretensões científicas e aquela que se insere na História Literária. Sua proposta é realizar esses três intentos separadamente. Seu ensaio se compõe, portanto, de três partes.

            Na primeira, o seu relacionamento com Madame Bovary. Como ele próprio diz, na “Introdução”, é um texto que fala mais dele do que da obra de Flaubert. Uma bela narrativa de seu encontro com a obra e com o seu personagem.  Recorda a primeira vez e, então, tinha dezesseis anos, que tomou conhecimento da existência do romance: no cinema da praça principal de Piura, cidade peruana situada nos limites da Floresta amazônica,  assiste, estrelado por James Mason, Lous Jourdan e Jenifer Jones, o filme feito pelos norte-americanos. Confessa que não ficou muito impressionado pois não procurou pelo livro numa época em que se tornara um verdadeiro devorador de romances. Sobre Flaubert, vai ouvir falar mais tarde. Na Universidade de San  Marcos, quando as palavras do crítico francês André Goyné sobre o realismo de Flaubert são abafadas pelos gritos ‘Viva a Argélia livre”com que os estudantes se  manifestavam contra as colônias francesas na África.

            Somente em 1959, ao chegar a Paris, é que Mario Vargas Lhosa irá ler Madame Bovary. Leitura que tomará conta dele como um feitiço poderosíssimo e que lhe dará duas certezas: uma, que delineia perfeitamente o escritor que ele teria apreciado ser; outra, que ficaria apaixonado por Madame Bovary até o fim de seus dias.

            Certamente, é essa paixão que norteará a análise que empreende na segunda parte de seu ensaio. Tentando ser objetivo, se dedica à estudar a origem e a feitura de Madame Bovary. Serve-se, muitas vezes, da Correspondência de Gustave Flaubert, de artigos e de obras escritas em diferentes épocas para responder às vinte perguntas que se propôs.            De que modo se consumou a transformação literária de Flaubert que iria culminar em Madame Bovary?  Qual era o seu método de trabalho? Quanto tempo levou para escrever o romance, quatro anos, sete meses e onze dias de trabalho ininterrupto? Quais os autores que o influenciaram? De que maneira sua vida pessoal e familiar se projetou no romance? entre outras, levam à respostas que se constituem um material resumido e ordenado para preparar o capítulo seguinte. Capítulo que irá se deter nas transfigurações que se processam a partir do fato real e nas quais se aninha a originalidade. Originalidade, esta, que dará autonomia à realidade fictícia diferenciando-se do real.

            Para Vargas Lhosa, o instrumento pelo qual se opera a transfiguração é o estilo. Ao estudar o estilo de Flaubert, chama a atenção sobre os objetos que se humanizam, sobre os homens que se apresentam como objetos, sobre a íntima vinculação entre o amor e a posse dos objetos, sobre a ambivalência de Emma Bovary e sobre os diferentes tempos da narrativa: o singular, o circular, o imóvel e o imaginário.

            Na terceira parte, ao mesmo tempo em que observa as técnicas narrativas precursoras que estão contidas nessa obra do século XIX, Vargas Lhosa se estende sobre os caminhos que ela abriu para tantos romances que se lhe seguiram.

            Mas, é, principalmente, ao enunciar conceitos sobre o romance contemporâneo que o ensaio do autor peruano se mostra extremamente atual. Ao falar de textos impassíveis, neutros ou da responsabilidade pedagógica do romancista, ao mencionar a existência de uma criação conformista e experimental  que, no entanto, continua a repetir obras do passado, ele incita à discussão. Sobretudo, se tais palavras ressoam no Continente, espaço que abriga, hoje, o que de melhor é produzido no mundo ficcional.

            Provocativas, polêmicas há, sem dúvida, lugar para elas nesse território quase todo colonizado culturalmente e submisso ao mundo dos outros.

            Ao buscar uma aproximação crítica mais ampla e que recusa o parcial, Vargas Lhosa não apenas aponta um caminho como dá uma lição de crítica àqueles que, no Continente, só tem olhos para perceber e aceitar o que se produz no outro hemisfério. Aquele que pretende enunciar todas as leis.