domingo, 26 de novembro de 1989

Pela saudade

            A cidade de Vera Cruz nasceu com a chegada dos espanhóis na Península de Yucatán. Atualmente, sua Universidade estende-lhe a presença por todo o Continente através de  publicações da área humanística:  Texto Crítico que surgiu sob a direção do uruguaio Jorge Rufinelli e  se constitui uma das mais importantes revistas sobre Literatura Latino-americana e a Coleção “Ficción  Universidad Veracruzana” já, há muitos publicando, em excelentes edições, não somente autores mexicanos, mas, também, aqueles de outros países da América.

            Em 1964, o qüinquagésimo nono volume da coleção é de autoria de Elena Garro: La semana  de los colores. Um livro de onze contos, ancorado num México que emerge, sobretudo, na consciência mestiça, formada pelos valores ibéricos superpostos aos que já existiam antes da chegada dos espanhóis no Continente.

            Solidariedade, traição, expressão de um mundo infantil, os temas universais  se particularizam em La semana de los colores num universo incapaz de fugir daquela dicotomia dramática instaurada nos anos da conquista, verdadeira lei a separar os homens em compartimentos estanques.

            Em quase todos os contos, mundos paralelos coexistem: o dos patrões e dos empregados; o dos adultos e o das crianças; o dos ricos e o dos pobres; o dos brancos e o dos índios.

            No conto “El árbol” se defrontam duas mulheres: Marta e Luiza. Marta, senhora  vestida de negro, colar de pérolas rosadas, solidão dourada numa casa em que as cortinas e os tapetes abafam os ruídos externos. Marta que acreditava, como seus amigos e parentes, que  os índios estavam mais perto dos animais do que dos seres humanos. Diante de Luiza, a índia que lhe bate à porta, ao entardecer, ferida, suja, medrosa, parece ter razão. E o tratamento que lhe dá é o que poderia ser dado, também, a um animal: atender as suas necessidades básicas e  exigir o comportamento adequado.

            Porém, para Luiza, era preciso mais  do que essa eventual caridade. Desamparada, desorientada, procurou refúgio na casa de Marta, branca e rica. Para ela contou  sobre o seu passado de misérias e sobre o crime que a levara à prisão; para ela contou da felicidade sentida, nesses anos de reclusão, em que, pela primeira vez, fora tratada como ser humano. Na cadeia, executara tarefas, se banhara, se alimentara e dançara, o que jamais  havia feito até então: Eu nunca tinha dançado antes, Martinha! A vida do pobre não é baile, mas caminhadas sobres as pedras e fome. Também contou para a branca que a solidão a levara a abraçar-se a uma árvore para confidenciar  seus pecados e suas tristezas e que eles foram tantos e tão cruéis que a árvore tinha secado. E teve medo.

            No desencontro entre as duas vozes, os destinos foram selados. Marta morreu esfaqueada por Luiza. Luiza  apenas desejou reencontrar a prisão e nela os dias felizes que escapavam como água. Quando procurou as antigas companheiras, ao entrar outra vez no cativeiro, não as encontrou. Havia esquecido que, entre a liberdade que fora forçada a aceitar ao término da pena e a prisão que acabava de buscar, se haviam passado vinte e cinco anos.

domingo, 19 de novembro de 1989

Pela honra

            Para lavar sua honra foi que Don Emilio, índio de sessenta anos, apunhalou o mascate.

Don Emilio, marido de Isabel, índia jovem que um dia, ao voltar  do trabalho, entre as mercadorias de um mascate, vê um vestido cor-de-rosa com enfeites brancos e azuis, com rendas, fitas, laços, lantejoulas. Maravilhada, Isabel fica muito tempo olhando, a vontade de possui-lo escorrendo dos olhos. Mas, nada deve ter que não lhe venha do marido.

            Outra vez o mascate na praça, outra vez o vestido diante dos olhos e ofertado mais barato. Isabel se afasta. No terceiro encontro, casual, o mascate indo embora, talvez tocado pelo olhar da índia, lhe dá de presente o vestido. Isabel ainda resiste às lantejoulas, às fitas, às rendas mas pega o vestido e foge.



            E passa a viver com seu delicioso segredo. À noite, quando todos dormem, Isabel põe o vestido e o admira. Depois, o despe e o esconde novamente. No caminho que percorre para levar comida ao marido, se detém, tira o seu vestido velho  põe o novo, cor de rosa, enfeitado. Caminha um trecho, feliz, para voltar a se trocar e continuar seu caminho.

            Mas, a descobrem as velhas do povoado. Corre a notícia de que Isabel tem um vestido recebido de alguém, um vestido exposto junto com as mercadorias do mascate. Inocência, ela jura para o marido. Porém, ele não mais a toca. Bastaram-lhe monossílabos com os velhos índios para saber o que fazer.

            Quando o mascate, novamente, aparece no povoado, don Emilio vai procurá-lo: Venho matá-lo, senhor. Venho para que nos matemos por causa de um vestido. Muita gente o acompanha. Todos sabem porque e como Don Emilio deve fazer o que é preciso. Como em Crônica de uma morte anunciada, ninguém irá impedir o ritual. Ambos levantam o punhal. Para um deles, a luz do sol fica negra.

            Isabel sofre as sanções de um pecado não cometido. Don Emilio, surdo às suas palavras, cego a sua vaidade adolescente, fica preso aos usos das leis patriarcais. Lava uma honra supostamente manchada. O mascate e Isabel parecem culpados e o que havia entre os três, era, apenas, um vestido cor-de-rosa.

            “Isabel es culpable” é um dos contos que compõem o livro El gobierno del cuerpo  (Joaquín Mortiz, 1977) de Ricardo Garabay. Mexicano, nascido em 1923, publicou Beber un cálice, Bellísima bahía, Lo que es de César, La casa que arde de noche e Diálogos mexicanos.

            Clássicos na sua forma ou se aproximando da expressão dinâmica do cinema, os contos de Goberno del cuerpo estão em acorde com a temática que os orienta: as tensões de uma classe média urbana essencialmente preocupada com seus  cotidianos problemas existenciais.

            Exceção do conjunto, o conto “Isabel es culpable”. Um universo distante, em todos os sentidos, dos demais que povoam o livro. O trabalho da terra e o silêncio bastam às duas vidas simples cuja trajetória deveria ser linear. E, simples, e linear se constrói o conto. Parco em palavras, enuncia apenas o perfil de cada personagem, o desejo pueril de Isabel e os atos de Don Emilio e do mascate que se seguirão ao desejo satisfeito.

            Os atos masculinos se inscrevem na tradição. Um procurando dar a morte; outro se defendendo. Ambos aceitando a lei. A mesma lei que impõe à mulher a impotência e a solidão. Silenciosa, submissa, Isabel sem defesa, se refugia na ilusão do vestido.Na arena da vida – mundo masculino – o direito que ela tem de possuir essa ilusão é decidido com punhais.

domingo, 5 de novembro de 1989

Nódoa no paraíso

            Nunca vi um lugar mais belo. Folhas de palmeira tão grandes que servem para cobri o teto das casas. Na praia, milhares de conchinhas nacaradas. E sempre, a mesma sinfonia do canto dos pássaros. Assim descrevia Cristovão Colombo as costas orientais de Cuba oito dias depois de chegar ao Novo Mundo. E, em nome dos reis da Espanha, ele tomou posse da ilha para um domínio que só iria terminar no dia 10 de dezembro de 1898 quando, pela Tratado de Paris, a Espanha, finalmente, a ela renunciou.

            Foi, portanto, numa colônia espanhola que chegou Fredrika Bremer, romancista sueca, autora de várias obras ( La familia, El presidente y sus hijas, Nina, Los vecinos, Herta, La casa), escritas entre 1831 e 1860. Após visitar os Estados Unidos, de Nova Órleans, ela viaja para Cuba. Das cartas que escreve à irmã e nas quais conta a sua descoberta do Continente, cinco tratam de Cuba (  as de número XXXII  à XXXV). Propriedade do Instituto Iberoamericano da Universidade de Gotemburgo, foram traduzidas para o espanhol e publicadas em La Habana pela editora Arte e Literatura, em 1981.

            Embora tenha observado, com muita curiosidade, a arquitetura local em que as casas são pintadas de azul, amarelo, verde ou alaranjado para evitar o brilho da luz sobre as paredes ,e, minuciosamente, descrito a vida familiar e social  e as atividades públicas e comerciais das cidades que visitou, Fredrika Bremer se deixa impressionar, sobretudo, pela maravilhosa natureza dos trópicos que, em tudo, contrasta com as neves de seu país natal.

            Na primeira carta, datada de 5 de fevereiro de 1815, diz que se encontra sob um céu claro e cálido, que o ar é esplêndido e delicioso. Nas páginas seguintes, a emoção de escutar os gorjeios dos pássaros e as vozes das lagartixas que povoam a noite como se fossem cantos de pássaros noturnos; ou o prazer que lhe proporciona a visão de milhares de colibris ao redor das flores coloridas e das palmeiras se movendo ao vento.

            Uma natureza em que o sol aquece, as árvores dão frutos e a lua exibe uma luz rosada Onde  não existe nenhuma planta tóxica, nenhum animal venenoso. Onde nem as abelhas tem veneno no seu aguilhão.

            Mas, para conhecer as plantações de cana e de café, Fredrika Bremer se adentra na ilha. Então, ela testemunha a vida dos escravos, os dias sem descanso, a força do látigo. Senzalas iguais a todas as que povoaram tantos outros territórios do Continente.

            Na embriaguez do ar, na luz radiosa da ilha, no colorida que desabrocha das casas e das flores, irrompe a sombra. A escritora sueca não a elude e se detém no sofrimento dos negros e nas injustiças e maldades dos brancos.

            Porque o homem ibérico fizera sua entrada no paraíso.