domingo, 27 de agosto de 1989

Gosto de dizer obrigada

            Foram aproximadamente oito milhões e meio de crianças de terceiro a sexto ano de escola primária que, no México, participaram de um concurso de redação, instituído pela “Comissão para a defesa do idioma espanhol”. Selecionados, primeiramente, pelos professores e, numa segunda fase, por um juri composto por escritores, os textos foram reunidos sob o título Así escriben los niños de México.

Embora as normas do concurso indicassem que tanto o tema quanto a extensão do trabalho fossem livres, percebe-se a submissão aos  velhos temas escolares: “O que eu gostaria de ser”, “Minha boneca”, “O cachorrinho”, “O gato”, “Quando eu era pequeno”, “A primavera”. O que, certamente, não irá impedir que, encerrados nesses temas, floresçam idéias e expressões cuja espontaneidade e riqueza evidenciam o inestimável potencial que existe em cada criança. Quando elas imaginam, são as fadas, as bruxas, os animais falantes que aparecem e, a exemplo dos contos de fadas tradicionais, o final é sempre moralizante – o mau desaparece ou é castigado – quem sabe, expressando o velho desejo do Homem de viver num mundo onde reine a justiça.

Mais do que a invenção, porém, o que prevalece nesses textos é a realidade a partir de situações  vividas. Sensações de prazer, originadas do calor que esquenta o chão, do cheiro de terra molhada que dá tanta alegria, da visão  do céu azul, bonito,estrelado. Ou, dos barulhos da casa, todo um universo para quem  tem nove anos: o suave ressonar da irmã a dormir, o virar das folhas do jornal que o pai lê,  os risos familiares, o leve roçar das agulhas de tricô, o bater     dos pratos na cozinha. Ou, ainda, emoções que chegam, com a alegria de encontrar e poder  levar para casa um animalzinho perdido; com a tristeza, tão grande, de perder um bichinho de estimação às quais, se misturam¸por vezes, reflexões sobre a maneira como devem sr tratados os animais para que sejam felizes.

E, extremamente sugestivo, o que se inscreve no tema “Eu gostaria”. Mais do que os outros, é um tema que extrapola o desejo infantil para ser, também, reflexo  de carências sociais:  a falta de água que vai impedir o cultivo de uma horta; a ausência  de posses que não permite a família conhecer o mar. Carência que está presente, também, no desejo de poder estrear sapatos novos, de oferecer à mãe, coisas que, pela pobreza, ela nunca teve.

Para alguns poucos – quem sabe aqueles raros iluminados que talvez venham a salvar a Humanidade – a aspiração consiste em ajudar os outros, no futuro. Ensinando, cuidando de doentes, construindo casas para que todos possam morar bem.

E há os que pensam num mundo vivendo em paz, numa sala de aula em que só existam crianças estudiosas. E há aqueles para quem a felicidade está nas coisas singelas: plantar melancia, comer chocolate, ver a andorinha tomar água na fonte, olhar para as gotas de chuva, caindo no chão.

E, como diz Gabriela Herrara Rodea, nove anos: Eu gosto  de tudo, menos das coisas ruins. Gosto de dizer obrigada. 

domingo, 20 de agosto de 1989

Antigas imagens

            O México ainda era colônia da Espanha quando nasceu José Joaquín Fernándes Lizardi. Como muitos outros, ele almejou ver a terra em que nascera como um país independente e para isso lutou com as armas de que dispunha: as palavras. Seus primeiros textos foram folhetos que vendia por alguns centavos. Mais tarde, fundou um jornal, El pensador mexicano. Tão inflamados os seus argumentos e tão cheios de razões que antes de ser publicado o número dez, ele já fora preso por ordem do rei.

            Impedido de divulgar seu pensamento, decidiu escrever obra de ficção e, assim, surgiu El periquillo sarniento, publicado em 1816, um ano depois de ter desistido de seu segundo projeto jornalístico, Alacena de frioleras, censurado porque não agradavam ao governo suas diatribes  contra a escravidão.

            El periquillo sarniento é um romance picaresco. Narra, em primeira pessoa, a vida de Pedro Sarniento, apelidado pelos colegas de periquito sarnento por se vestir de verde e amarelo e por ter sarna. Sua vida de estudante e de jogador que acaba por conduzi-lo ao hospital e à prisão, é uma sucessão de  aventuras  cujo relato  o narrador procura tornar agradável, evitando a monotonia do estilo com a mistura de um tom sério e sentencioso com  outro, trivial e bufão. Perfeitamente encaixadas nos episódios, digressões sobre sucessos do cotidiano ou sobre aspectos morais que, no dizer dos críticos, diminuem o ritmo narrativo. A estas observações sobre a estrutura da obra se acrescentam as que censuram, igualmente, em Lizardi, sua galeria de tipos populares e um estilo eivado de mexicanismos.

            Parece incompreensível que tais razões se sobreponham ao fato de ser El periquillo sarniento, uma das primeiras tentativas de romance na América que traz, no seu bojo, importantes idéias  de liberação, não somente da metrópole, mas de tudo o que por preconceituoso, supersticioso, dogmático ou conservador, retarda o desenvolvimento de um povo.

            Muitas das obras que tratam da História da Literatura no Continente, mal mencionam El periquillo sarniento. No entanto, além de ser um clássico no gênero, não espelha apenas o México do século XVIII mas, como diz Anita Arroyo no seu livro Américo en su Literatura,  todo  o Continente  Latino-americano cujas transformações se produzem numa sincronia historicamente fatal. Assim, ao pintar Lizardi as feridas sociais de sua pátria, estava pintando os mesmos erros e os mesmos horrores das outras colônias hispano-americanas.

            E quer queira, quer não, o Brasil faz parte desse Continente e não de outro, permitindo estabelecer, sincronicamente e diacronicamente inúmeros paralelismos. Então, é lamentável o se poder constatar quanto é atual esse romance de Lizardi. Porque as incontáveis décadas transcorridas desde o seu aparecimento não foram  suficientes para que as transformações almejadas por ele e por tantos outros, fossem concretizadas. A conquista da liberdade e com ela os benefícios de uma vida digna para todos ainda é um sonho distante no Continente.

sábado, 5 de agosto de 1989

O universo dos outros

            A música regeu o destino de Ansín. Minha mãe dizia que eu nasci com a flauta na boca, ele repetia. Desde pequeno, na retreta de domingo, ele chegava primeiro que todos para aprender , ouvindo a banda. Um dia, porque faltou um músico  na festa da Escola, alguém se lembrou  que  Ansín sabia tocar. E tocou porque de sua flauta saiam todos os sons. E, assim, passou a tocar nas festas do povoado durante anos até que  os músicos profissionais lhe tomaram o lugar. Foi sendo cada vez mais esquecido, sua flauta silenciando cada vez mais. Só tocava para si mesmo, sozinho, no seu rancho.

            Ansín  é personagem de “ Hombre-Flauta”, título do conto e do livro de Julio C.da Rosa, uruguaio, nascido em 1920, na cidade de Treinta y Trés. Autor de vasta obra, inserida na “Literatura Criollista”, os contos que fazem parte desse livro, no dizer de Heber Raviolo, que lhe escreveu o prólogo, se constituem um resumo exemplar de algumas características do gênero:  enfoque realista de temas,  preocupações pelo resgate da linguagem popular, opção pela narrativa cujo eixo seja aqueles que habitam o campo.

            As cinco narrativas de Hombre-Flauta estão centradas em cinco perfis: o de Ansín, incapaz de aprender a ler ou de fazer qualquer outra coisa que não fosse tocar a flauta; o de Abedonio Lemos que de guri sem dono se fez homem sozinho e lutando; o de dona Isabel, forte como madeira de lei e valente para suportar a miséria; o de Andrés Rosa, homem do campo para quem a cidade era um labirinto; o de Francisco Vaz, contrabandista amansado pelo anos. A partir desses perfis se desenha a vida de cada um, gerida por acasos. Ansín passa a ganhar a vida, tocando um instrumento porque  faltou músico no dia da festa; Abedonio  encontrou sua vocação, já homem feito quando lhe ofereceram para ser treinador de cavalos; a pobreza de Dona Isabel se instala com o advento  da estrada de ferro que tornou sem sentido o trabalho do marido; a festa do centenário da cidade revelou para Andrés Rosa alegrias desconhecidas; o contrabando realizado nos trens de fronteira neutralizou aquele que fazia Francisco Vaz, enfrentando perigos na travessia dos campos. São vidas inscritas num universo que ao se transformar, provoca marginalizações, isolamento. A pequena cidade ou  seus arredores onde essas vidas transcorrem se transforma com a chegada do progresso e para alguns – os que não se dão conta ou são incapazes de mudar – acaba faltando espaço.

            E é extraordinária a maestria com que Julio C. da Rosa fixa esses momentos. Recriando esse homem do interior do país e seu destino bloqueado por circunstâncias facilmente geradoras de derrotas – que não inocenta nem responsabiliza pelas misérias e tristezas que narra – seu texto se constitui uma ficção documental.

            Entre o imaginário e o real, a beleza desse universo que, por distante ou ignorado, é somente o dos outros.