domingo, 25 de junho de 1989

As meninas que perderam os sonhos


            Um pequeno livro, formado de oito breves contos que, numa linguagem expressivamente cotidiana, narra as aspirações medíocres de uma classe média dominada por preconceitos e submissões. Tem por título El diablo son las cosas ( Letras Cubanas, 1988) e sua autora é Mirta Yánez, nascida em La Habana em 1947. Entre esse último livro e o primeiro, Las visitas (1970), medeiam Todos los negros tomamos café, Valoración múltiple sobre la novela romántica en Latinoamérica, Serafin y su aventura con los caballitos, La Habana es una ciudad bien grande, La hora de los mameyes.

            Em El diablo son las cosas, aparecem encontros e desencontros de gerações, destinos que  a vida truncou, indignações e entusiasmos. Um riso bem humorado ou melancólico ou um ligeiro amargor marcam cada página de um livro dominado por figuras femininas. que se movem numa paisagem urbana e se desvendam, sobretudo, em espaços interiores.

            Três mulheres velhas e celibatárias, ligadas por extrema amizade até que a morte de uma delas revele sentimentos ignorados; a viúva Beti, na solidão em que vive, se inscreve, ainda, a mágoa de matar por acaso o camundongo que morava na sua cozinha; a mãe de uma adolescente, enfrentando diálogos difíceis no melhor estilo da luta de gerações; a solteirona de má sorte em busca de sorte melhor. E as meninas.

            Cristina, personagem de “Ópera prima”. Quase criança, está em Moscou para competir. Desde que se levantava sem ajuda e sem apoio no chiqueirinho, o pai selara o seu destino: seria campeã de ginástica olímpica. E por esse objetivo, lhe tirou a infância, passada sem sorvete,nem doces, nem amiguinhos, nem televisão para que todas as suas energias fossem voltadas para o treino. Porém, em Moscou, algo acontece. Cristina obtém excelente nota e, também, a convicção de que, para ser merecedora da medalha de ouro, algo lhe falta. Prefere desistir, ainda que isto seja difícil no difícil momento em que descobre sua inesperada adolescência.


            Em “Búfalo ciego”, a outra menina é a voz que só conta vitórias nesse caminho que se inicia num povoado perdido entre canaviais. De fora, chegavam as vozes pelo rádio. Para La Habana saíam os  trens. Entre os sons radiofônicos, as partidas e chegadas na estação, as incursões na biblioteca empoeirada  e a escola, ela passava os seus dias. Até lhe cair nas mãos a moeda tida por valiosa que no, no seu mundo infantil, passa a ser um talismã. Uma posse que lhe faz a vida sem medos e que, na época da fantasia, lhe irá permitir chegar aos lugares sonhados. É a efígie do búfalo cego, cunhada na moeda que lhe dará certezas. De que um dia chegará ao Islã das Mil e Uma Noites, ao Mont Saint Michel com a maré baixa, ao Palácio de Inverno,  Pólo Norte, ao Rio de Janeiro no Carnaval, ao deserto  do Sahara, aos leões da África, à água furtada parisiense de Jean Cristophe.

            A moeda do búfalo ficara esquecida no fundo da gaveta. A luta pela vida e os sucessos alcançados se superpuseram aos sonhos da infância. Doutora em Ciências, chefe de um departamento técnico científico, moradora de uma grande casa num bairro rico, esteve num conclave cientifico no Canadá e não visitou as cataratas; esteve em Paris e se esqueceu da água furtada de Jean Christophe; em Leningrado não teve tempo para ver o Palácio de Inverno; na praça de São Marcos se preocupou mais em cuidar do vestido novo do que dar migalhas aos pombos.

            Nessas e nas outras histórias, aqui  e ali, alfinetadas risonhas que atingem idiossincrasias, crenças, estados de espírito. Aqueles que se espelham entre os sonhos infantis de Cristina e da narradora de “El búfalo ciego” e que, de algum modo, questionam o relacionamento da infância com o mundo dos adultos, podem levar ao enternecimento. Mais do que isso, porém a pensar como e de que forma, o mundo adulto modela o ser humano. E nem sempre, é preciso dizer, o faz para melhor.

domingo, 18 de junho de 1989

A espera

            Quando voltava do exílio, o avião fez escala no Rio de Janeiro e Antonio Di Benedetto foi fazer algo muito simples: comprar café. O suficiente para ser roubado de todos os dólares que trazia, fruto dos direitos autorais que recebera. Pouco depois, ele morria sem  tempo de  realizar o sonho de ter um de seus livros traduzido para o português.

            Nascido no dia 2 de novembro de 1922 em Mendonza, Argentina, é autor de uma obra densa e de rara qualidade. Após  muitos anos de jornalismo, se inicia na Literatura, ao trinta anos, com um livro de contos, Mundo animal. Seguem-lhe El cariño de los tontos e Declinación y ángel e os romances El pentágono, El silencioso e Zama sua obra mais conhecida.


            Zama é a biografia fictícia de um personagem histórico, Don Diego de Zama, funcionário do Vice-reinado do Prata. Em Assunção, no ano de 1790, incapaz de se opor a seu destino ele espera. Espera um barco, uma carta de sua mulher Marta, espera a chegada de uma mulher loira que lhe povoa os sonhos, espera o decreto real que o levará de volta a Buenos Aires. Enquanto isso, na pequena cidade de ruas empoeiradas, de costumes restritos, Don Diego sufoca na tremenda solidão que o seu caráter lhe impõe.

            O ar e a luz lhe chegam, então, das breves visões femininas que o acaso lhe permite: uma pequena mão enluvada  pousada na janela de uma carruagem; um olhar provocador e fugidio; a nudez feminina entrevista através da folhagem no banho do rio.

            Um olhar mais demorado, como casual, num jantar protocolar, o predispõe à conquista e se lança ao assédio de Luciana, mulher de Honorio Piñares de Luenga. Olhares, visitas, efêmeras carícias e repetidas promessas, jamais cumpridas o ludibriam e esgotam.

            Protegida pelo casamento, pela criadagem, pelas normas vigentes, a mulher branca é inatingível. Fáceis, as outras, as de corpo moreno, as índias, as negras, as mulatas. Mas branca e espanhola há de ser, ele repete.

            No entanto, o amor esperado não se cumpre. As mulheres que entrevê e procura, se perdem. Luciana parte para a Espanha e Don Diego sucumbe ao próprio chamado. A mulher que o recebe não é branca nem espanhola. É parte desse mundo imenso que está a ser refeito, ordenado pelos que chegaram ao Continente e tudo  podem, de tudo se apossam e que acreditam tudo saber.

            A espera do amor, como as demais que atormentam Zama, foi fraudada. Prisioneiro da vida, impotente diante dos fados ele o seria em qualquer lugar do planeta. Mas, para Antonio Di Benedetto, o seu destino só poderia ter por cenário a América. E, embora nem o Paraguai, nem Assunção sejam citados no romance, é deles que se trata. E do Continente. Porque os elementos externos caracterizadores – a orografia, a hidrografia, a fauna, a flora, a linguagem, as crenças, a arquitetura – são menos sugestivos na construção da verdade romanesca do que as imagens desse hierárquico mundo colonial ibérico, pejado de instituições e de preconceitos.

            E, verdadeiras devem ser as palavras de Antonio Di Benedetto quando uma vez disse: Diego de Zama é o drama de todos nós que passamos a vida esperando e que nos fazemos vítima da espera.  A essas  vítimas ele dedicou o romance. Isto é, para nós, os filhos do Continente.