A
história de Ângelo e Teresa, Másssimo e Pierina parece um jogo de quatrilho resume, em determinado momento da
narrativa um dos personagens. E, à semelhança do jogo – em que a cada mão de
cartas é escolhido um novo parceiro – a história se constrói em quatro partes,
em quatro contagens. Na primeira, são as lembranças dos primeiros tempos do
Brasil, ao chegar da Itália, que fluem do velho Aurélio Cardone, o casamento de
seu filho Ângelo e as primeiras emoções amorosas de Teresa por Mássimo, marido da prima Pierina. Na
segunda contagem, os dois casais saem de Santa Corona, colônia perto de Caxias
e estão em San Giuseppe, morando na mesma casa, donos de terras e do moinho. É
o momento em que se inicia a troca de parceiros. Mássimo e Teresa optam pelo
amor e pela fuga, provocando, na terceira contagem, a escolha de Ângelo e
Pierina pela posse da terra, pela segurança. Mais tarde, também, pelo encontro
amoroso.
Embora
em diapasão diferente, são encontros espontâneos, vorazes, torrentes
incontroláveis que ignoram ou enfrentam preconceitos e leis e que chegam à quarta contagem como imagem
luminosa da vida. Negação irrefutável, pois se trata de um jogo demoníaco,
segundo pensa o padre que realizou os dois casamentos. No romance de José
Clemente Pozenato, as jogadas foram casamentos incrustados em valores e
tradições, foram amores fortes o bastante para quebrar esses valores e essas
tradições.
Trama
aliciante. Diálogos rápidos e vivos. Sinuosos. Mundo ficcional denso. Excelente
ritmo narrativo.
No
entanto, as qualidades de O Quatrilho ultrapassam essas tão elementares
rubricas. Mais do que um simples contar de amores, o romance se constitui um
momento da ficção gaúcha contemporânea, ao inserir nela o imigrante italiano.
Não apenas na figura de um ou outro personagem, como já o fizera Erico
Verissimo em O arquipélago ( Dante Camirino, Marco Lunadi) mas,
colocando em cena toda uma comunidade, na qual o processo de assimilação mal se
delineava. Na primeira década de 1990, época em que se inicia a ação, o pai já
toma chimarrão na cozinha. Mas, as leis familiares são ainda aquelas trazidas
da Europa: O mais velho teria que ser o
primeiro a procurar outro pedaço de
terra. Era a lei. E, assim, um
novo êxodo.
Uma
comunidade fixada por algo de seus costumes ( o serão dos vizinhos) ,de suas
crenças (a desgraça é obra de uma bruxa e para livrar-se dela é preciso
atravessar a vassoura na porta, emborcar a panela da polenta, rezar o
padre-nosso ao contrário), por algo de sua comida ( o “taiadele”, a salada
temperada com vinagre de vinho e toucinho, o “pissacan”, a polenta, o frango
frito), por rápidas cenas cotidianas ( o almoço de domingo, a festa de
casamento). Uma comunidade fixada pelos seus representantes naquilo que lhes é
mais característico: o culto do trabalho como fonte de riqueza, o respeito pela
religião.
Ângelo
( cabelo de fogo,olhos azuis) e Pierina ( forte, cintura grossa) são aqueles
colonos que trabalham pela posse da terra, pela
aquisição da riqueza: A colônia, a
casa, o moinho, a venda, a carreta, o
termo de mulas, o paiol abarrotado.
O padre Giobbe e o padre Gentile, os
representantes da Igreja sem os quais não se completaria o quadro da
comunidade, assim como tampouco estaria terminado sem as figuras de Roque e de
Sacariot, a lucidez e o anarquismo.
Na
figura dos religiosos, a Igreja se mostra em dois tons: um claro que envolve
o padre Giobbe, outro sombrio que se enovela no padre Gentile. O padre Diobbe
atende Santa Corona. Honesto na sua incapacidade de discernir claramente onde
está bem
e o mal, embora impaciente e irritadiço, é o pastor de seu rebanho.
Seguro de si e dos dogmas que prega, o
padre Gentile não despreza os bens materiais e não se recusa à vingança em nome
de verdades muitíssimos discutíveis que são discutidas por Roque e por Scariot.
Também por Teresa e Pierina que, numa comunidade patriarcal, guardando,
aparentemente, a submissão, na verdade, conduzem os parceiros e os
acontecimentos. Teresa, sem medos, sentimento materno esmaecido, ao traçar o
caminho para o amor; Pierina, enfrentando, numa determinação que a impele a
desafiar o padre diante do altar, os preconceitos e as leis estabelecidas.
Um
pouco antes de 1983, ao cumprir-se um século da chegada dos imigrantes
italianos no Rio Grande do Sul, algumas publicações trataram dessa imigração: Memórias
de um imigrante italiano, Colonização italiana em Ascurra, Os
italianos no Rio Grande do Sul, Colônia italiana: religião e
costumes, entre outros. Uma penúria bibliográfica se considerado o valor da
contribuição da comunidade para o Estado. Isto significa que a História da
colonização italiana deve ser
completada para que o perfil do Rio Grande do Sul se mostre mais preciso. Se
aceita for a tese de Hans Magnus Enzeberger de que a ficção e o fáctico
pertencem ao mesmo campo semântico da palavra História, o valor de O
quatrilho extrapola os simples limites da narração lúdica para significar,
com o sopro da vida que lhe percorre as páginas, os imprescindíveis acréscimos
à objetividade histórica.
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