domingo, 12 de março de 1989

Uma (linda) história do sul

            A história de Ângelo e Teresa, Másssimo e Pierina parece um jogo de quatrilho resume, em determinado momento da narrativa um dos personagens. E, à semelhança do jogo – em que a cada mão de cartas é escolhido um novo parceiro – a história se constrói em quatro partes, em quatro contagens. Na primeira, são as lembranças dos primeiros tempos do Brasil, ao chegar da Itália, que fluem do velho Aurélio Cardone, o casamento de seu filho Ângelo e as primeiras emoções amorosas de Teresa  por Mássimo, marido da prima Pierina. Na segunda contagem, os dois casais saem de Santa Corona, colônia perto de Caxias e estão em San Giuseppe, morando na mesma casa, donos de terras e do moinho. É o momento em que se inicia a troca de parceiros. Mássimo e Teresa optam pelo amor e pela fuga, provocando, na terceira contagem, a escolha de Ângelo e Pierina pela posse da terra, pela segurança. Mais tarde, também, pelo encontro amoroso.

            Embora em diapasão diferente, são encontros espontâneos, vorazes, torrentes incontroláveis que ignoram ou enfrentam preconceitos e leis  e que chegam à quarta contagem como imagem luminosa da vida. Negação irrefutável, pois se trata de um jogo demoníaco, segundo pensa o padre que realizou os dois casamentos. No romance de José Clemente Pozenato, as jogadas foram casamentos incrustados em valores e tradições, foram amores fortes o bastante para quebrar esses valores e essas tradições.

            Trama aliciante. Diálogos rápidos e vivos. Sinuosos. Mundo ficcional denso. Excelente ritmo narrativo.

            No entanto, as qualidades de O Quatrilho ultrapassam essas tão elementares rubricas. Mais do que um simples contar de amores, o romance se constitui um momento da ficção gaúcha contemporânea, ao inserir nela o imigrante italiano. Não apenas na figura de um ou outro personagem, como já o fizera Erico Verissimo em O arquipélago ( Dante Camirino, Marco Lunadi) mas, colocando em cena toda uma comunidade, na qual o processo de assimilação mal se delineava. Na primeira década de 1990, época em que se inicia a ação, o pai já toma chimarrão na cozinha. Mas, as leis familiares são ainda aquelas trazidas da Europa: O mais velho teria que ser o primeiro a procurar outro pedaço de terra. Era a lei. E, assim, um  novo  êxodo.

            Uma comunidade fixada por algo de seus costumes ( o serão dos vizinhos) ,de suas crenças (a desgraça é obra de uma bruxa e para livrar-se dela é preciso atravessar a vassoura na porta, emborcar a panela da polenta, rezar o padre-nosso ao contrário), por algo de sua comida ( o “taiadele”, a salada temperada com vinagre de vinho e toucinho, o “pissacan”, a polenta, o frango frito), por rápidas cenas cotidianas ( o almoço de domingo, a festa de casamento). Uma comunidade fixada pelos seus representantes naquilo que lhes é mais característico: o culto do trabalho como fonte de riqueza, o respeito pela religião. 

            Ângelo ( cabelo de fogo,olhos azuis) e Pierina ( forte, cintura grossa) são aqueles colonos que trabalham pela posse da terra, pela  aquisição da riqueza: A colônia, a casa, o moinho, a venda, a carreta, o termo  de mulas, o paiol abarrotado. O padre Giobbe  e o padre Gentile, os representantes da Igreja sem os quais não se completaria o quadro da comunidade, assim como tampouco estaria terminado sem as figuras de Roque e de Sacariot, a lucidez e o anarquismo.

            Na figura   dos  religiosos, a Igreja  se mostra em dois tons: um claro que envolve o padre Giobbe, outro sombrio que se enovela no padre Gentile. O padre Diobbe atende Santa Corona. Honesto na sua  incapacidade de discernir claramente onde está  bem  e o mal, embora impaciente e irritadiço, é o pastor de seu rebanho. Seguro de si e dos  dogmas que prega, o padre Gentile não despreza os bens materiais e não se recusa à vingança em nome de verdades muitíssimos discutíveis que são discutidas por Roque e por Scariot. Também por Teresa e Pierina que, numa comunidade patriarcal, guardando, aparentemente, a submissão, na verdade, conduzem os parceiros e os acontecimentos. Teresa, sem medos, sentimento materno esmaecido, ao traçar o caminho para o amor; Pierina, enfrentando, numa determinação que a impele a desafiar o padre diante do altar, os preconceitos e as leis estabelecidas.

            Um pouco antes de 1983, ao cumprir-se um século da chegada dos imigrantes italianos no Rio Grande do Sul, algumas publicações trataram dessa imigração: Memórias de um imigrante italiano, Colonização italiana em Ascurra, Os italianos no Rio Grande do Sul, Colônia italiana: religião e costumes, entre outros. Uma penúria bibliográfica se considerado o valor da contribuição da comunidade para o Estado. Isto significa que a História da colonização italiana   deve ser completada para que o perfil do Rio Grande do Sul se mostre mais preciso. Se aceita for a tese de Hans Magnus Enzeberger de que a ficção e o fáctico pertencem ao mesmo campo semântico da palavra História, o valor de O quatrilho extrapola os simples limites da narração lúdica para significar, com o sopro da vida que lhe percorre as páginas, os imprescindíveis acréscimos à objetividade histórica.

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