domingo, 19 de março de 1989

Das conquistas e dos adjetivos

            “Apaixonado louco pelas sinuosidades do idioma,bêbado de palavras”, assim foi chamado Carlos Droguett, em Poitiers (França), no Colóquio Internacional sobre a sua obra. Alain Sicard foi muito feliz nessas palavras que sintetizam o estilo do romancista chileno. Para El hombre que las ciudades trasladaba, elas servem à perfeição.

            Uma escrita repetitiva, labiríntica, espiral desse romance de Carlos Droguett em que o substantivo na enumeração das coisas recria um universo cotidiano e simples, inscrito na epopéia da conquista; em que o verbo tanto é ação quanto demonstrativo de estados de alma; em que o adjetivo, usado numa profusão generosa, irá tingir, sublinhar essa tragédia pessoal do homem que veio para a América com  fito de conquistá-la.

            Como amostragem curiosa e significativa desse profusão generosa em El hombre que trasladaba las ciudades, vale referir que nas cento e trinta e três páginas que formam o primeiro capítulo do romance aparecem dois mil, setecentos e trinta e seis adjetivos. Presença expressiva não somente pela quantidade mas também pela sua disposição na frase e, em alguns casos, pela “aliança desusada”, expressão de Ernesto Guerra da Cal para se referir ao emprego do adjetivo que foge do usual. Será, no entanto, ao extrapolar das suas funções de elemento estilístico  que o adjetivo em El hombre que trasladaba las ciudades irá se constituir uma importante presença para a compreensão da visão de mundo de Carlos Droguett. Nesse romance, trata-se de um mundo ficcional onde se movem índios, soldados, capitães e padres capelães. Movem-se ao redor de uma cidade que fazem e desfazem sem conhecer as verdadeiras razões desse construir e desconstruir. Apenas lhe sofrem as conseqüências. Os índios, os soldados, os animais, carregando a cidade nas costas a cada mudança. Os capitães e os padres,  responsáveis pelas decisões. Dominados todos por essa realidade difusa no corpo social, formada pelos costumes e tendências e por idéias  (políticas, jurídicas e morais e religiosas) que os conquistadores, atravessando os mares trouxeram para o Continente.

            Muitos são os adjetivos que se relacionam com o sofrimento, seja ele físico (corpos encarangados e enfermos), seja ele moral ( soldados aterrorizado, doente, triste). E, além do número, a densidade resulta muito expressiva como nesta frase em que sete adjetivos dão conta da transitoriedade do ser humano, apresentado na sua decadência física e moral:seus belos dentes agora frouxos e carcomidos, seu riso franco e audaz, agora atemorizado e incrédulo .

            Nas relações que se estabelecem no Novo Mundo, as mesmas já sacralizadas além mar. Na Conquista, o comandante da expedição  em nome do rei é o dono do espaço em que pisa e da vida de seus comandados. Então, o adjetivo irá principalmente se relacionar com dois verbos: prender e matar: corpos atados, corpos firmemente amarrados, índios mortos, afogados, queimados.  Para justificar  decisões  - o capitão manda abandonar velhos e feridos, manda matar os que se rebelam – os adjetivos se repetem: justo, Santo, bom, necessário, conveniente,  porque são ordens apoiadas em verdades indiscutíveis para os conquistadores: trazemos a civilização e a vida e a cruz e a espada da Espanha, diz um capitão, resumindo sua próprias certezas norteadoras.

            Da civilização, diz um outro personagem, aprendem os índios a traição e a covardia; da vida, restam seres degradados; da grandiosidade da conquista, calcada na cruz e na espada, a imagem deprimente de um soldado ferido. Nele, no soldado ferido, se pousa o olhar do comandante. Um olhar fixado pela visão de mundo de Carlos Droguett, alimentada pelo amor que ele professa pelo ser humano: viu um soldado ensangüentado que se alçava orgulhoso de sua sela e no chão alguém deitado nuns trapos, somente um lábio azulado, as mãos já mortas, uns soldados hirtos, via roupas manchadas, o braço estraçalhado no qual escorria o sangue, a sujeira, os joelhos despedaçados que brilhavam humildemente e ao sol, uns pés enormes, inchados se apertavam contra a cintura de um cavalo, mantas, calças chamuscadas, uns borzeguins desfeitos e úmidos, viu o peito afundado na armadura velha e mofada.

domingo, 12 de março de 1989

Uma (linda) história do sul

            A história de Ângelo e Teresa, Másssimo e Pierina parece um jogo de quatrilho resume, em determinado momento da narrativa um dos personagens. E, à semelhança do jogo – em que a cada mão de cartas é escolhido um novo parceiro – a história se constrói em quatro partes, em quatro contagens. Na primeira, são as lembranças dos primeiros tempos do Brasil, ao chegar da Itália, que fluem do velho Aurélio Cardone, o casamento de seu filho Ângelo e as primeiras emoções amorosas de Teresa  por Mássimo, marido da prima Pierina. Na segunda contagem, os dois casais saem de Santa Corona, colônia perto de Caxias e estão em San Giuseppe, morando na mesma casa, donos de terras e do moinho. É o momento em que se inicia a troca de parceiros. Mássimo e Teresa optam pelo amor e pela fuga, provocando, na terceira contagem, a escolha de Ângelo e Pierina pela posse da terra, pela segurança. Mais tarde, também, pelo encontro amoroso.

            Embora em diapasão diferente, são encontros espontâneos, vorazes, torrentes incontroláveis que ignoram ou enfrentam preconceitos e leis  e que chegam à quarta contagem como imagem luminosa da vida. Negação irrefutável, pois se trata de um jogo demoníaco, segundo pensa o padre que realizou os dois casamentos. No romance de José Clemente Pozenato, as jogadas foram casamentos incrustados em valores e tradições, foram amores fortes o bastante para quebrar esses valores e essas tradições.

            Trama aliciante. Diálogos rápidos e vivos. Sinuosos. Mundo ficcional denso. Excelente ritmo narrativo.

            No entanto, as qualidades de O Quatrilho ultrapassam essas tão elementares rubricas. Mais do que um simples contar de amores, o romance se constitui um momento da ficção gaúcha contemporânea, ao inserir nela o imigrante italiano. Não apenas na figura de um ou outro personagem, como já o fizera Erico Verissimo em O arquipélago ( Dante Camirino, Marco Lunadi) mas, colocando em cena toda uma comunidade, na qual o processo de assimilação mal se delineava. Na primeira década de 1990, época em que se inicia a ação, o pai já toma chimarrão na cozinha. Mas, as leis familiares são ainda aquelas trazidas da Europa: O mais velho teria que ser o primeiro a procurar outro pedaço de terra. Era a lei. E, assim, um  novo  êxodo.

            Uma comunidade fixada por algo de seus costumes ( o serão dos vizinhos) ,de suas crenças (a desgraça é obra de uma bruxa e para livrar-se dela é preciso atravessar a vassoura na porta, emborcar a panela da polenta, rezar o padre-nosso ao contrário), por algo de sua comida ( o “taiadele”, a salada temperada com vinagre de vinho e toucinho, o “pissacan”, a polenta, o frango frito), por rápidas cenas cotidianas ( o almoço de domingo, a festa de casamento). Uma comunidade fixada pelos seus representantes naquilo que lhes é mais característico: o culto do trabalho como fonte de riqueza, o respeito pela religião. 

            Ângelo ( cabelo de fogo,olhos azuis) e Pierina ( forte, cintura grossa) são aqueles colonos que trabalham pela posse da terra, pela  aquisição da riqueza: A colônia, a casa, o moinho, a venda, a carreta, o termo  de mulas, o paiol abarrotado. O padre Giobbe  e o padre Gentile, os representantes da Igreja sem os quais não se completaria o quadro da comunidade, assim como tampouco estaria terminado sem as figuras de Roque e de Sacariot, a lucidez e o anarquismo.

            Na figura   dos  religiosos, a Igreja  se mostra em dois tons: um claro que envolve o padre Giobbe, outro sombrio que se enovela no padre Gentile. O padre Diobbe atende Santa Corona. Honesto na sua  incapacidade de discernir claramente onde está  bem  e o mal, embora impaciente e irritadiço, é o pastor de seu rebanho. Seguro de si e dos  dogmas que prega, o padre Gentile não despreza os bens materiais e não se recusa à vingança em nome de verdades muitíssimos discutíveis que são discutidas por Roque e por Scariot. Também por Teresa e Pierina que, numa comunidade patriarcal, guardando, aparentemente, a submissão, na verdade, conduzem os parceiros e os acontecimentos. Teresa, sem medos, sentimento materno esmaecido, ao traçar o caminho para o amor; Pierina, enfrentando, numa determinação que a impele a desafiar o padre diante do altar, os preconceitos e as leis estabelecidas.

            Um pouco antes de 1983, ao cumprir-se um século da chegada dos imigrantes italianos no Rio Grande do Sul, algumas publicações trataram dessa imigração: Memórias de um imigrante italiano, Colonização italiana em Ascurra, Os italianos no Rio Grande do Sul, Colônia italiana: religião e costumes, entre outros. Uma penúria bibliográfica se considerado o valor da contribuição da comunidade para o Estado. Isto significa que a História da colonização italiana   deve ser completada para que o perfil do Rio Grande do Sul se mostre mais preciso. Se aceita for a tese de Hans Magnus Enzeberger de que a ficção e o fáctico pertencem ao mesmo campo semântico da palavra História, o valor de O quatrilho extrapola os simples limites da narração lúdica para significar, com o sopro da vida que lhe percorre as páginas, os imprescindíveis acréscimos à objetividade histórica.

domingo, 5 de março de 1989

A rosa perdida

            Como seus romances, também a poesia de Humberto Costantini se ancora no real.Um real preciso, onde o espaço e o tempo tem o limite de uma cidade e de uma década e cujos traços se aprofundam nas andanças dos exílios.

            Submergido no que chamou de lodaçal do exílio, o poeta, obnubilado pela falta que lhe faz Buenos Aires e até por convicções  patrióticas que o impedem  de ser feliz fora de seu país, é incapaz de apreciar as cores e os sons que o México lhe oferece. Distante da cidade que ama, para se salvar, para se encontrar, para ressuscitar, Humberto Costantini realiza o seu ritual. Coloca os óculos, acende um cigarro, toma uns mates e se dispõe a esperar que lhe nasça uma história com a ajuda  de Deus ou das musas do chimarrão. Uma história que aconteça em Buenos Aires, onde ele entra sub reticiamente pela mal vigiada fronteira da imaginação.

            Contorna os quartéis e delegacias e postos policiais e ignora o nó da garganta e as imprecauções que lhe acodem por se saber tão longe. E com os olhos nostálgicos do exilado, extasia-se diante do lugar que mais lhe parece ser merecedor de elogios: o Rosedal. Onde há muitos anos florescem rosas e onde, em torno dos caramanchões floridos, eram os seus passeios de domingo.

            O tempo passou, as rosas desapareceram. Não as lembranças. Aquelas que foram de seus pais, eternizadas em fotos e as suas próprias lembranças que remontam à infância, à adolescência, aos passeios com os filhos, aos passeios com os netos e nas quais se inscreve uma lembrança de futuro ao se ver ali, sentado num dos bancos, aos setenta anos de idade.

            E, se apegando às emoções das lembranças, conta uma história que não desejaria fosse verdadeira. Porque Humberto Costantini se deteve no prazer de estar no parque de flores desabrochadas – e são lírios, begônias e glicínias – e de sol a despejar-se sobre as árvores. E, porque, nessas imagens de aquarela se insinuou a mancha de um Ford Falcon. Visão que o poeta consegue apagar por duas vezes. Mas que, mancha suja enorme abutre/como um pesadelo ousado no asfalto, na terceira vez que aparece vence os esforços do poeta e persiste.

            Então, o narrador, sabendo que de seu bojo viria a repressão, teve medo do que iria, fatalmente, ocorrer logo depois. Para evitar que tristezas e tragédias e massacres entristecessem a sua história só lhe sobrou um caminho:  retirar a folha da máquina e deixar a história para sempre inconclusa.

            Publicado em Cuestiones con la vida ( Buenos Aires, Galerna,), “Rosedal” é um longo poema de muitas estrofes cujo número de versos varia numa construção sem sinais gráficos de pontuação e sem maiúsculas. Escritos num espanhol americano que é uma exata reconstrução do linguajar de Buenos Aires - O civilizado transcendente e culto portenho universal - como o define o poeta, são versos cintilantes, inventivos, espontâneos, de um profundo lirismo e marcados por aquele humor que Luigi Pirandelo definiu: algo que leva ao riso e logo, rapidamente, ao amargor.

            “Rosedal”é um canto à vida. Ainda que a alegria de viver  e de  construir se interrompa, às vezes, e que a presença de um Ford Falcon – um pedaço de sombra, uma imundície vinda de quem sabe onde- não deixe esquecer que, em Buenos Aires, houve momentos em que a tristeza reinou, soberana, e não apenas por uma rosa perdida.