“Apaixonado louco pelas sinuosidades do
idioma”, “bêbado de palavras”, assim
foi chamado Carlos Droguett, em Poitiers (França), no Colóquio Internacional
sobre a sua obra. Alain Sicard foi muito feliz nessas palavras que sintetizam o
estilo do romancista chileno. Para
El hombre que las ciudades trasladaba, elas servem
à perfeição.
Uma
escrita repetitiva, labiríntica, espiral desse romance de Carlos Droguett em
que o substantivo na enumeração das coisas recria um universo cotidiano e
simples, inscrito na epopéia da conquista; em que o verbo tanto é ação quanto
demonstrativo de estados de alma; em que o adjetivo, usado numa profusão generosa,
irá tingir, sublinhar essa tragédia
pessoal do homem que veio para a América com
fito de conquistá-la.
Como
amostragem curiosa e significativa desse profusão generosa em El hombre que
trasladaba las ciudades, vale referir que nas cento e trinta e três
páginas que formam o primeiro capítulo do romance aparecem dois mil, setecentos
e trinta e seis adjetivos. Presença expressiva não somente pela quantidade mas
também pela sua disposição na frase e, em alguns casos, pela “aliança
desusada”, expressão de Ernesto Guerra da Cal para se referir ao emprego do
adjetivo que foge do usual. Será, no entanto, ao extrapolar das suas funções de
elemento estilístico que o adjetivo em
El hombre que trasladaba las ciudades irá se constituir uma importante
presença para a compreensão da visão de mundo de Carlos Droguett. Nesse
romance, trata-se de um mundo ficcional onde se movem índios, soldados,
capitães e padres capelães. Movem-se ao redor de uma cidade que fazem e
desfazem sem conhecer as verdadeiras razões desse construir e desconstruir.
Apenas lhe sofrem as conseqüências. Os índios, os soldados, os animais,
carregando a cidade nas costas a cada mudança. Os capitães e os padres, responsáveis pelas decisões. Dominados todos
por essa realidade difusa no corpo social, formada pelos costumes e tendências
e por idéias (políticas, jurídicas e
morais e religiosas) que os conquistadores, atravessando os mares trouxeram
para o Continente.
Muitos
são os adjetivos que se relacionam com o sofrimento, seja ele físico (corpos encarangados e enfermos), seja ele moral ( soldados aterrorizado, doente, triste). E, além do número, a
densidade resulta muito expressiva como nesta frase em que sete adjetivos dão
conta da transitoriedade do ser humano, apresentado na sua decadência física e
moral:seus belos dentes agora frouxos e carcomidos, seu riso franco e
audaz, agora atemorizado e incrédulo .
Nas
relações que se estabelecem no Novo Mundo, as mesmas já sacralizadas além mar.
Na Conquista, o comandante da expedição
em nome do rei é o dono do espaço em que pisa e da vida de seus
comandados. Então, o adjetivo irá principalmente se relacionar com dois verbos:
prender e matar: corpos atados, corpos firmemente amarrados, índios mortos, afogados, queimados. Para justificar decisões
- o capitão manda abandonar velhos e feridos, manda matar os que se rebelam
– os adjetivos se repetem: justo, Santo, bom, necessário, conveniente, porque são ordens apoiadas em verdades indiscutíveis
para os conquistadores: trazemos a
civilização e a vida e a cruz e a espada
da Espanha, diz um capitão, resumindo sua próprias certezas norteadoras.
Da
civilização, diz um outro personagem, aprendem os índios a traição e a
covardia; da vida, restam seres degradados; da grandiosidade da conquista,
calcada na cruz e na espada, a imagem deprimente de um soldado ferido. Nele, no
soldado ferido, se pousa o olhar do comandante. Um olhar fixado pela visão de
mundo de Carlos Droguett, alimentada pelo amor que ele professa pelo ser humano: viu um soldado ensangüentado que se alçava
orgulhoso de sua sela e no chão alguém deitado nuns trapos, somente um lábio azulado, as mãos já mortas, uns
soldados hirtos, via roupas manchadas,
o braço estraçalhado no qual escorria o sangue, a sujeira, os joelhos
despedaçados que brilhavam humildemente e ao sol, uns pés enormes, inchados se
apertavam contra a cintura de um cavalo, mantas, calças chamuscadas, uns
borzeguins desfeitos e úmidos, viu o peito afundado na armadura velha e mofada.


