domingo, 27 de novembro de 1988

Histórias de galpão

            O estudo da Literatura Gauchesca como expressão regional de três países (dos quais um se expressa em idioma diferente), ignorando as fronteiras políticas impostas, se constitui uma proposta de estudo da Literatura a partir de fronteiras geográficas.

            O Uruguai, o sul do Rio Grande do Sul e as planícies argentinas que com ele fazem fronteira se constituem um exemplo de região  geográfica cujos habitantes e cujos costumes possuem inúmeros denominadores comuns. E, no domínio da narrativa, o contador de causos – um  relato fantástico, exagerado – criado para o entretenimento numa roda de chimarrão.

            De um mesmo espaço geográfico, separado pelas linhas demarcatórias oficiais, dois narradores: Simões Lopes Neto, gaúcho de Pelotas e José Maria Obaldía, uruguaio de Treinta y Três. Na recriação literária dos causos de galpão, eles contam três causos iguais. Um deles, o da cobra enregelada.

            É’ um inverno muito frio e ao buscar  espeto para o churrasco, o gaúcho encontra um, excelente. Nele espeta a carne e a coloca no fogo. Eis que de repente, carne e espeto saem deslizando campo afora. Alguém percebe, chama a atenção para o estranho fato e constata-se  que o “espeto”era uma cobra. Enregelada pelo frio, ao calor do fogo se reanimou e fugiu para o seu ninho.

            Em Língua Portuguesa, o causo foi recolhido por Simões Lopes Neto. Aconteceu a Romualdo quando ele era cadete e a tropa, em meio à marcha forçada, fez alta para um churrasco. Cada soldado devia assar o seu pedaço de carne e Romualdo logo achou o espeto ideal duma meia braça, grossinho, liso, e o que mais é, já com a ponta feita. A carne no fogo, a prosa e o alerta de que o assado ia indo embora, fugindo da fogueira.

            Publicado em folhetim (o primeiro, em junho de 1914) no Correio Mercantil de Pelotas, este caso é um dos Casos de Romualdo, livro que, tantas vezes, a Editora Globo (a velha editora Globo) publicou.

            No livro de José Maria Obaldía , 20 mentiras de verdad (publicado em Montevidéu, em 1971), a história da cobra é contada por Don Brígido, uma entre tantas que vai desnovelando entre mate e mate. Falava-se sobre os duros invernos. Don Brígido lembra daquele que foi o  mais frio de sua vida: O campo tinha amanhecido branqueando como um lençol.... Ele andava tropeando e foi encarregado de assar a carne. Ao procurar um galho para fazer o espeto, achou um, retinho e pontiagudo. Colocada a carne no espeto perto das brasas,  foi tratar do mate quando o capataz lhe grita que o assado estava disparando. Era que o pau, retinho e pontiagudo que eu tinha escolhido para o espeto era uma bruta cobra enregelada pelo frio. Quando sentiu o calorzinho das brasas, reviveu de repente e saiu disparando rumo à cova.

            Simões Lopes Neto, apaixonado pelas tradições de sua terra, folclorista de galpão, como o chamou Augusto Meyer, deu voz ao Romualdo que existiu de verdade e que muitas histórias contou. Ou, deu vida àquelas vozes antigas que se perpetuam no anonimato..

            José Maria Obaldía, dominado pela necessidade de recriar o mundo de sua infância, dele extrai os relatos que  Don Brígido irá contar. No prólogo de 20 mentiras de verdad, Julio D. da Rosa o considera um precursor neste resgate da mentira criola. Precursor, também, foi Simões Lopes Neto ao coligir, pacientemente, as mentiras do Romualdo.

            Cada um , no seu desejo de fixar a criatividade do homem do campo. Um homem que foi separado por fronteiras, por interesses, por idiomas. E que, no entanto, lá ficou, na sua visão de mundo, enraizado, comprometido com  a sua terra.

domingo, 20 de novembro de 1988

A América de um ilhéu

                                                                               Tardes são feitas para durar
                                                                               mentiras não
                                                                               pesco todos os dias
                                                                               águas escuras
                                                                               por enquanto. 

            Um jovem poeta gaúcho assina esses versos. Renato Tapado, nascido em 1962, estudante de Letras na Universidade Federal de Santa Catarina cuja Editora lhe publicou os versos: Poemas para quem caminha. Com esta obra e Grifos e Emblemas de Hugo Mund Junior, ambas vencedoras do Prêmio Luiz Delfino – 1987, a Editora da Universidade catarinense inicia a coleção “Ípsis Literis”, destinada a divulgar a produção do Estado nas áreas de ficção, poesia e teatro.

            Poemas para quem caminha  é um pequeno livro de cinqüenta e cinco páginas . Os poemas, muitos deles de reduzidas dimensões ( dois, três, quatro versos), misturados com outros maiores ( nunca mais de vinte e seis versos), são como lampejos poéticos cujo início e fim não foram cristalizados pela escrita tradicional com suas maiúsculas, com  sua pontuação, com seus títulos. Dois aspectos chamam, especialmente, a atenção nos poemas de Renato Tapado. Uma lírica  despida daquele individualismo juvenil, tantas vezes, expressão primeira dos primeiros anos, testemunha das tensões de seu tempo; e, raro  na expressão poética brasileira, a presença da América Latina.

            A inserção do poeta no tempo presente irá definir o caminho de quem se quer em transformação ( amanheço / esqueço as âncoras em balsas) e orientar o olhar que não se esquiva de uma realidade que, também, precisa ser transformada ( no cotidiano dos que estão morrendo / junto com as mentiras e os pássaros inocentes).

            Um sentir que se estende além do espaço natal, ampliando uma geografia na qual se inscreve o Continente. Presença feita de poemas , aliás os únicos que possuem títulos ( Uruguai, Argentina, Honduras, Cuba); ou de referências esparsas em versos ( queira ler quatro livros sobre a América / receber uma carta de Havana); em expressões ( irmão da Nicarágua, chileno, Buenos Aires, ou casa tomada, lembrança do nome de um dos mais conhecidos contos de Julio Cortazar); em uma ou duas palavras em espanhol.  Ou presenças ainda mais efetiva, expressa nos versos de poetas latino-americanos que aprecem em epígrafe ou na recriação que se sobrepõe aquela frase tão cara a tantos latino-americanos: a morte é cotidianamente / endurecer-se / porém sem ternura.

            Poemas para quem caminha são os primeiros passos de um poeta. Na rota que escolheu encontra raízes e sonhos. E farpas. Do sofrimento que delas advém, também versos.

domingo, 13 de novembro de 1988

O mundo maravilhoso de Piquín e Chispita

               Serafin J.García, poeta e narrador uruguaio da cidade de Treinta e Três é, sobretudo, conhecido por Tacuruses. Um livro de versos que teve sucessivas edições porque, além de muitas outras qualidades, é expressão perfeita da voz do gaúcho que, sobrevivendo às transformações sociais,  submetido pelas leis do trabalho, tenta, ainda, se manter livre.É’, também, autor de contos e de relatos infantis, muitos dos quais  são livros textos nas escolas uruguaias. Um deles, Piquín y Chispita foi relacionado entre os dez melhores livros infantis, publicados em 1967/68 com vistas ao prêmio internacional Hans Christian Andersen de 1970.

              Ao sair de sua toca subterrânea, pela primeira vez, o tuco-tuco Piquín fica maravilhado com  o radiante céu azul, o rio largo e de águas prateadas, os ondulados campos verdes, o sol brilhante. Ele somente desprega os olhos dessas belezas para ver Chispita, a lagartixa verde. Simpatia mútua, palavras trocadas e juntos decidem ver o mundo.         Suas descobertas vão acontecendo. Cada capítulo do livro é uma aventura. O encontro com João Sem Medo que, apesar do nome (ou, por causa dele), diante do perigo se põe a tremer e quer fugir; ou com o boi Sem Pressa que os ajuda a atravessar o riacho; o espetáculo feérico dos vagalumes dançando no céu....

               Cada encontro, um favor recebido, um favor prestado: Piquín abrindo um túnel para livrar os peixes das presas do lobo que os havia aprisionado para se poupar o trabalho de caçar; ou cavando galerias subterrâneas que, ao deixar o solo sem firmeza assustaram a capivara  cuja avidez herbívora deixava  sem alimento outros pequenos animais.

               E, assim, as aventuras se sucedem. Encantadoras num mundo de planícies, de arroios cantantes, de aromas silvestres e pontilhado de borboletas coloridas. Um mundo em que a maldade, quando existe, é a expressão da luta pela sobrevivência. Para  que reine  a harmonia, trabalham alguns e entre eles, Piquín e Chispita.

               Mais de vinte e cinco anos se passaram desde a primeira edição dessa história. O mundo mudou e na velocidade das mudanças muita coisa se perdeu. Outras chegaram: imagens de mundos mecânicos e personagens robotizadas, movidas, em lugares estranhos, por forças fantásticas e inumanas. Nos estereótipos, a luta entre o Bem e o Mal contém significados a serviço de verdades que servem a uns em detrimento de outros. Como se não houvesse mais espaço para bichinhos ingênuos e espaços luminosos, é imposto, hoje, um outro mundo infantil que o despreparo dos países do Terceiro Mudo aceita sem discutir, ignorando que valores se transmitem e que somente eles podem evitar que o Continente continue a perder a sua identidade.

                 Ao oferecer em Piquín y Chispita a natureza em que o tom e as cores e os seres são nossos e com eles, cenas de amizade de altruísmo, Serafín J. García não apenas encanta seus pequenos leitores. Também faz pensar: já é tempo que o Continente conte para seus filhos suas próprias histórias