sábado, 19 de dezembro de 1987

Crônica de uma morte anunciada

            Já em exibição na Europa, o filme de Francisco Rossi, baseado no livro de Gabriel García Márquez, publicado em 1961 e lançado como um produto de consumo, tal o aparato publicitário que o cercou antes e no momento de sua aparição. Na verdade, com este seu último romance, Crônica de uma morte anunciada,  o autor colombiano quebra o silêncio que se seguiu à publicação de El otoño del patriarcaou seja, um silêncio de seis anos e que, até agora, tem sido explicado por acontecimentos extra-literários. Crônica de uma morte anunciada mal chega às duzentas páginas e admite, somente, uma leitura ininterrupta. Dizer isto, até pode causar estranheza pois foi dito, tantas vezes que já é lugar comum repetir, tratar-se de um livro que se inicia desvendando o seu final: No dia em que o iriam matar, Santiago Nasar  se levantou às 05:30 da manhã... Nada mais preciso, então, do que o título desta narrativa de fatos presenciados por  outros que não o narrador. Ele apenas recompõe, vinte e sete anos depois, o que lhe é transmitido.

            A morte anunciada no título e nas primeiras linhas da narrativa é a de Santiago Nasar. Duas horas antes de se levantar para assistir à chegada do Bispo na cidade, já era voz corrente a ameaça que pesava sobre ele. Concretizada, morreu na condição de terceiro elemento de um triângulo amoroso que ele próprio ignorava existir, em nome de uma honra que não fora ofendida, pelas mãos dos quais não desejavam matar e diante de uma cidade passivamente atônita. Na narrativa cronológica de seus passos, na explicação de cada uma das omissões e verdades se entremeiam informações sobre o assassinato do jovem ( rico, religioso, caçador, mulherengo, habituado ao sangue dos bezerros que castrava e ao dos animais inermes que matava)   e sobre os tipos que o rodeiam (figuras imutáveis que a Literatura recria e torna a recriar   e que, de repente ou repentinamente, a vida faz existir e a sociedade leva a  atuar: o delegado, o padre, o militar, a prostituta, a criada, a mãe, a noiva. E sobre as duas outras figuras, partes do triângulo que, digamos, existiu. São tipos que sobressaem  em meio a outros  quarenta. Todos eles apresentados nominalmente . alguns por suas funções na narrativa, outros pela sua função na micro sociedade do povoado. Com exceção de Santiago Nasar ( 21 anos, esbelto e pálido, pálpebras árabes e cabelos cacheados, mão de gavião carnívoro)  e de Bernardo San Román (tinha uma cintura estreita de vaqueiro, os olhos dourados e a pela crestada pelo salitre) , esses personagens todos se definem por uns poucos traços, umas poucas palavras pronunciadas e, sobretudo, por suas ações: o General Petrônio San Román usando o barco de cerimônias do Congresso para estar presente no casamento do filho; as famílias, colocando os enfermos na passagem do Bispo para que recebessem a bênção e se curassem; a exibição do lençol na manhã seguinte à noite de núpcias. Cristalizações de um meio conservador onde a autoridade, as crenças, os costumes não apenas se prestam, mas até exigem um traço mais forte, caricatural. E’o aparecimento, na autópsia do jovem assassinado, entre o lodo do conteúdo gástrico, de uma medalha da Virgem  do Carmo  que ele havia engolido aos quatro anos,. Ou a doença de Pedro Vicário que resistiu aos métodos mais brutais do tratamento militar e às injeções de arsênico e às purgações de permanganato do doutor Dionísio Iguarán e somente foi curada na cadeia.

            O cronista não questiona. Limita-se a desejar entender a fatalidade, oferecendo evocações, lembranças, numa linguagem sem sinuosidades, sem meandros, despojada,  se uma comparação for feita com a sinfonia barroca do livro anterior. Porém, não suficientemente despojada a ponto de privar o texto das centelhas de um emprego inusitado do adjetivo hiperbólico , do fantástico, do eufemístico. Perfeita, ao diluir o trágico que seria a inocência de Santiago Nasar, ao fazer emergir o cômico, o absurdo das coincidências, das explicações, das verdades de cada um.

            Construída em idas e vindas que enovelam o leitor, é uma narrativa destinada ao sucesso de repetidas edições embora tenha que enfrentar o paralelo inevitável com a definitiva obre-prima  que é Cien Años de soledad, Paralelo inevitável e desnecessário  porque  Crônica de uma morte anunciada  é, também, certamente, uma obra única ainda que, assim como nas outras ficções  do auto, o lírico se entremeie à burla e à  troça. Ao leitor  cabe entender  que tais recursos  possuem significados bem mais amplos do que os simples sorrisos que provocam.

sábado, 12 de dezembro de 1987

Memória do fogo: a sedução da palavra

            No início, são as primeiras vozes, os mitos do nascimento da América. Vozes dos homens, dos animais, dos deuses, dos presságios, da profecia: Muita miséria haverá nos anos do império da   cobiça. Os homens serão escravos. Triste estará o rosto do sol. Logo, o velho novo mundo, no qual chegam os conquistadores ibéricos. Corre o sangue, cumpre-se a profecia. Delineia-se o mapa da América e nele se incrustam não as ações heróicas mas aquelas realizadas quando os heróis são simplesmente homens.

            Ignorados, impensados momentos de História da América que vão se justapondo – pequenas peças de mosaico,  diz Eduardo Galeano -   até oferecer uma verdade cujo sentido difere daquele  que tradicionalmente (oficialmente) é dado a conhecer. Narrativa de situações extremas em que se perderam os conquistadores da América ( em que foram destruídos os conquistados). Narrativas de estados de alma. Agir e sentir – apenas o essencial –  a entrelaçar-se  para tecer um contorno da América que se afasta daquele já conhecido.

            Nada foi inventado nesse livro de História cujas fontes documentais são indicadas sob cada um dos textos. E’ na maneira de escrever Memória do fogo que Eduardo Galeano leva ao leitor  não apenas o que aconteceu no Continente mas, também, os sons, os perfumes, as cores, as formas, as cenas, as paisagens, os personagens e os fatos. E’ o som das florestas ou o assobio do Bopé-jokú que faz o milho crescer e dar espigas gigantes, o som das chuvas e dos ventos, o som das canções indígenas. E’ o gosto e o aroma das frutas americanas, a goiaba, a nêspera. O abacaxi que alegra os olhos o nariz, os dedos, a língua  de Gonzalo Fernández de Oviedo quando prova as frutas do Novo Mundo.   Ou, o espetáculo da natureza que se mostra ao homem como um deus: Torrentes estrepitosas, espumosas, caem do céu para lavar o sangue de todos os caídos e redimir todos os desertos, caudais desatam vapores e arco íris e arrancam selvas do fundo da terra seca,águas que bramam, ejaculação de Deus fecundando a terra, eterno primeiro dia daCriaçã..

            A figura sem par de Malinche, batizada Marina, que de Cortés teve um filho e para ele, o conquistador do México abriu as portas do Império de Montezuma. Ou de Beatriz que, viúva, quis governar e foi impedida pelas lavas de um vulcão.  Ou de Miguel Mármol, o de vários nascimento e uma só morte.

            São fatos transcendentais como o do Papa Paulo IIL ao assinar Sublimis Deus, a ata que determina  serem os índios  seres humanos, dotados de alma e de razão. Ou, de outros menos definitivos como a queima, em 1562, dos livros maias. Livros que falavam de signos e imagens, dos trabalhos e dos dias e dos sonhos e das guerras de um povo nascido antes que o  deus dos cristãos. Haviam sido escritos para que as crianças pudessem ver-se na história dos seus, para que conhecessem o movimento das estrelas, a freqüência das elipses, as profecias dos deuses e para que pudessem chamar a chuva e as boas colheitas de milho.

            Uma história feita a partir das façanhas daqueles que não se vêem diante de um continente para construir mas, diante da presa   fácil, do lucro vil. Ou a partir  das lutas, do caminhar e do sofrer  dos que sabem e são presos, dos que desejam e são impedidos de chegar à sociedade justa. Uma história de encantamentos provocados por palavras que, sem dúvida, se dirige aos sentidos, mas que, sobretudo, se mostram cheias de interrogações ( e de respostas) sobre aqueles que construíram (destruindo) os destinos do Continente.

            Palavras cuja sedução está muito longe de ser inocente.





                                                                                

sábado, 5 de dezembro de 1987

Do humor de Humberto Costantini

            Segundo Humberto Costantini, seu exílio durou sete anos, sete meses e sete dias. Então, retornou a Buenos Aires onde a Editora Brughera festejou sua volta com a publicação de De dioses, hombrecitos y policias, Prêmio Casa de las Américas, um romance que, durante anos, foi proibido na Argentina enquanto circulava em edições do México, Bulgária, Alemanha, Israel, Cuba, União Soviética e Estados Unidos.

            Para o português, não foi traduzido. Portanto, nunca é demais insistir no prejuízo desse isolamento em que vive o Brasil em relação aos demais países do Continente pois ele é responsável pelo desconhecimento de obras cuja leitura, por várias e diferentes razões ou é imprescindível ou proporciona momentos de incalculável prazer. Como o caso desse romance, publicado em 1984 em Buenos Aires.

            De dioses, hombrecitos y policias é uma narrativa construída em três linhas paralelas e trata, exatamente, segundo informa o título, de homenzinhos, deuses e policias. Os homenzinhos formam um grupo de amantes de poesia , a Agrupação Polimnia, já no seu décimo ano de atividades  que se reúne a cada mês com o inocente desígnio de ler, para um auditório atento, os seus poemas. No Olimpo, os deuses Afrodite, Atenéia e Hermes que entre esses cultores de poesia tem  os seus preferidos.  Atentos a seus destinos, sabendo-os ameaçados, esquecem   os próprios desacordos para antepor-se a Edes e  a seus malefícios. Os policiais se preparam para obedecer a ordens superiores que determinam executar doze elementos do grupo  tidos por subversivos. Ordens  que, na verdade, não advém do tirocínio ou da justiça mas somente da vontade de  Edes, deus vaidoso, impotente para o amor e que precisa de mortos para povoar os seus domínios.

            A ação se passa em poucas horas: o tempo que dura  a  reunião da Agrupação Polimnia do dia 3 de dezembro de 1975. Nela,  como sempre,  os sócios, ou seja, os homenzinhos, lêem os seus poemas. Tempo suficiente para que dois círculos se fechem ao redor deles:  a Sombra anunciadora da Morte, fiel serva de Edes, primeiramente traçando círculos lentos em torno da casa para depois se aproximar e, sob a inócua aparência de mancha de umidade, se instalar sob o teto;  e os quatro Ford Falcon que se aproximam com muitos homens fortemente armados para cumprir a tarefa de extermínio.

            Dos homenzinhos, sabemos pela narrativa de um deles a partir do que vê e do que percebe;  a ação policial  é dada a conhecer através de relatório de subordinados  aou chefe; e os feitos dos deuses, transmitidos pelo narrador todo-poderoso a quem é permitido, inclusive, saber o que se passa no Olimpo.

            Essas três vozes se entremeiam  e, ora no presente, ora no futuro vão contando o que se passa e o que se passará nessa casa situada numa das ruas de Buenos Aires para onde convergem cuidados e interesses tão díspares. A do narrador omnisciente, revelando como o destino dos humanos está submisso ao capricho dos deuses; a  de José Maria Pulicichio, muito cândida, expressão de uma visão de mundo alienada -  e comum  a dos demais  sócios – que lhe permite encontrar refúgio na Polimnia : em meio ao caos de violência e escuros apetites que se cerne sobre Buenos Aires neste verão de 1975 nossa Agrupação é para nós uma ilha, um oásis de paz, um lugar onde, ainda, o culto do espírito prima sobre a burda matéria e sob cujo teto, e em especial junto a seu  pátio florescido de glicínias, encontramos por fim o quê, com obstinação a vida nos tem negado durante anos. Compreensivo e sentimental até o exagero o seu discurso ridículo e risível é tão  ridículo e risível  quanto aquele dos relatórios policiais . Remetem a uma comicidade  que não é vã  porque alimentada com esse humor ácido que é o humor de que fala Luigi Pirandello, “o sentido do contrário: aquele que a partir de uma cena, de um fato cômico faz surgir a reflexão que transforma a comicidade em sofrimento. Isto é, a cristalização do riso.

            A leitura de Dioses, hombrecitos e policias faz rir. Um riso que muitas vezes se cristaliza. E’quando o livro de Humberto Costantini se torna um libelo contra essas sombras ameaçadoras e essas presenças terríveis – os conhecidos Ford Falcons levando presos quaisquer cidadãos, os seqüestros, as torturas, as conhecidas mortes sem julgamento pelos para-policias -   que impedem o vida no Continente.