sábado, 24 de outubro de 1987

Mario Benedetti: o escritor e a crítica no contexto do sub-desenvolvimento

            O uruguaio Mario Benedetti, além de contista (Cuentos Completos), romancista (La trégua), poeta (Inventário), crítico literário (Literatura Uruguaya del siglo XX ), ensaísta (El país de la cola de paja, El recurso del supremo patriarca) é um dos autores latino-americanos de leitura imprescindível.

            Em El recurso del supremo patriarca, publicado no México, em 1979, o primeiro artigo trata, obviamente dos três romances: El recurso del método de Alejo Carpentier, Yo el Supremo de Augusto Roa Bastos e El otoño del Patriarca de Gabriel García Márquez. Três romances cujo eixo narrativo gira em torno da figura do ditador. E o título do livro de Mario Benedetti não se constitui, apenas, uma combinação irônica, uma síntese metafórica porque nos trabalhos que compõem a obra se trata, também das relações entre os povos  sub-desenvolvidos e aqueles que se apropriam do poder.

            Nos outros onze trabalhos que compõem o livro são discutidas  questões muitíssimos oportunas: a ausência, nos países sub-desenvolvidos, na maior parte das vezes, de uma elite cultural cuja visão seja, simplesmente, latino-americana; as relações escritor/crítico, escritor/aparato publicitário; as  condições de produção, a neutralização do intelectual latino-americano, atraído pelas fundações norte-americanas. O trabalho mais importante é, sem dúvida, “O escritor e a crítica no contexto do sub-desenvolvimento”.

            Como precisa o título, as considerações nele desenvolvidas não versam sobre a Crítica Literária em geral, mas sobre a Crítica Literária  da América Latina onde não existe – seja para propulsar, seja para conter – um só campo alheio ao político, ao social, ao econômico e às lutas pela liberdade. O quê significa, para Mario Benedetti, não ser possível abordar a Crítica Literária separadamente da situação de dependência dos países latino-americanos que desenvolvem a cultura da dominação na qual se inserem, por um lado, o escritor colonial ( produtor da Literatura de evasão) e o crítico colonizado ( por exemplo, pela lingüística, pelo estruturalismo) e da qual são marginalizados ( pelo exílio ou pela morte) aqueles para quem o “real aparatoso”  de que fala Jorge Enrique Adoum, não  somente pode, mas deve ser testemunhado.

            E Mario Benedetti constata que talvez possa parecer curioso o fato de que, em meio às condições que são, principalmente, adversas para o trabalho intelectual – a opressão na maior parte dos países latino-americanos ou a dramática experiência do exílio – venha a surgir uma crítica onde se planteia  a dimensão de um ponto de vista basicamente latino-americano e cuja tarefa prioritária vai ser a procura de expressão latino-americana e a interpretação de sua realidade. E, ainda, que essa crítica somente possa se expressar em poucos países que permitem a discussão uma vez que na maior parte do Continente reina uma zona de silêncio e obscurantismo  no qual  a crítica vai para a cadeia ou para o exílio junto com o poeta e com o romancista.

            Inegavelmente, é  o testemunho de uma experiência vivida e compartilhada nas andanças do exílio. Mario Benedetti foi professor de Literatura na Universidade da República do Uruguai e crítico literário em Montevidéu até se ver obrigado, como tantos, a abandonar o país. Razão, entre outras, que lhe permite constatar a mudança sofrida pela maior parte  dos intelectuais: aferrados até há alguns anos atrás a um frágil conceito de liberdade burguesa, atualmente, se não assumiram, pelo menos, passaram a entender a liberdade revolucionária.

sexta-feira, 9 de outubro de 1987

Por uma crítica latino-americana

            Sendo a crítica, num sentido amplo, a mediação entre o texto e a leitura e sendo a Literatura Latino-americana a expressão literária de povos diferentes, ligados estreitamente, por numerosos paralelismos, a crítica latino-americana poderia ser considerada como uma aproximação às obras latino-americanas que fosse, antes de mais nada, coerente com o texto estudado e vinculada ao contexto no qual a obra teve a sua gênese. O quê pode ser perfeitamente factível desde que sejam levados em conta os obstáculos que impedem, também nessa área,   as atividades dos povos latino-americanos de se desenvolverem de forma autêntica e absoluta.

            Na verdade, os obstáculos para o estudo da Literatura Latino-americana tem a sua origem num estado de coisas que é comum a toda América Latina: a existência de um certo espírito que aportou aqui nos tempos da Colônia e permaneceu sem nuanças, comandando, muitas vezes, as atividades culturais. Assim, os países latino-americanos voltam-se para a metrópole – qualquer que seja ela -  e não pensam em se comunicar com os países que, no mesmo Continente, possuem realidades semelhantes. Nem sempre ( para não dizer raramente) aquém e além da barreira lingüística ou de  fronteira existe um conhecimento do que se passa do outro lado. Embora existam as chamadas ilhas de desenvolvimento que se querem iguais aos países desenvolvidos, como a própria expressão sugere, estas ilhas representam fenômenos isolados dentro de um vasto contexto sub-desenvolvido.  Assim, esse espírito de Colônia  faz com que as dificuldades para o estudo da Literatura Latino-americana  comecem já no que poderíamos chamar de infra-estrutura: as condições de trabalho. As bibliotecas, mesmo as universitárias, não possuem o acervo mais comezinho: o texto (sequer os clássicos), os textos críticos antigos ou contemporâneos, os periódicos. Quanto ao empréstimo inter-bibliotecas  sejam elas  dentro do próprio país  ou com as bibliotecas  de outros países, no momento, significa, apenas, uma utopia. As livrarias, por sua vez, não dispõem de acervo relacionado aos países da América; tampouco possibilitam uma aquisição imediata de material importado pois embora  possível, essa aquisição   é sempre regida por entraves ( que diríamos burocráticos) e assim, de uma lentidão exasperante. Como as informações editoriais são insuficientes (quando existem), só resta continuar a ler  e a estudar os autores que, por uma razão ou outra, são “lançados” pelos países cuja estrutura editorial seja independente. Os outros, aqueles autores que por determinadas causas não são ou não devem ser comerciáveis ou, ainda, cujas obras aparecem em edições limitadas ou em periódicos de vida transitória, esses, dificilmente ou ocasionalmente serão conhecidos já não diríamos do grande público mas dos próprios estudiosos.

            O desconhecimento do que se realiza nos demais países latino-americanos no que se refere aos textos de criação e/ou de crítica, a dificuldade, pelo isolamento em que esses países se mantém para estabelecer intercâmbio duradouro entre si, a facilidade em receber material bibliográfico dos países industrializados, assim  como auxílios que possibilitam  uma especialização nesses países e um contato direto com sua cultura faz com que a  metodologia, também na área de Letras, seja importada dos países industrializados que já tem resolvidos os seus problemas fundamentais. O que significa, ainda e mais uma vez, prestar-se à dependência de esquemas culturais alienígenas e alienantes, uma vez mais, prestar-se à auto-colonização. Uma opção que diante dos textos latino-americanos, passa a se constituir não só, apenas uma atividade lúdica ( seria a mediação certa para o texto de combate, para o texto de denúncia?) mas, sobretudo passividade diante de um sistema de submissão cultural que a realidade do Continente americano não mais justifica.

            Para fugir à passividade e à submissão, seria necessário  uma reflexão sobre a posição humanitária do escritor latino-americano e sobre  o contextual que muitas vezes condiciona a gênese do texto; uma reflexão sobre a maneira de formular uma aproximação da Literatura Latino-americana que seja coerente com o nosso meio, nossas necessidades, nossa forma especial de desenvolvimento,

            Reflexões que nos levariam a poder falar de nossos textos com as nossas próprias palavras.