domingo, 24 de dezembro de 1989

Tempo de crenças e descrenças

            É a história de um operário bêbado que, abandonado pela mulher,  passou a dizer que o santo da igreja conversava com ele.  Uma história real contada por um médico a Carlos Droguett que a transformou em romance: El Compadre, publicado pela Joaquín Mortiz do México, em 1967. Nele, o operário, um carpinteiro, se chama Ramón Neira. Numa fria manhã, é encontrado pela mãe que o procurava, dormindo na igreja, perto da imagem de São Judas Tadeu. Um tempo antes, apaixonado, se casara com Yolanda e fora feliz. Ao sentir que ela começa a  se afastar, prende-se, cada vez,  mais à bebida. Entre o prazer de beber e o andaime, deixa o tempo passar. Seu filho cresce e somente quando já tem oito anos é que Ramón Neira cede aos pedidos de sua mãe e decide batizá-lo. Em honra de Pedro Aguirre, ex-presidente do Chile, lhe dará o nome de Pedro.

            Pedro Aguirre, negando o governo de seu antecessor quis voltar-se para os desprivilegiados do país. Morreu antes de cumprir as promessas feitas e para Ramón Neira sua morte foi o esvair-se de todas as esperanças: se ele não tivesse morrido, teria mudado o mundo. E o “velhinho negro” como era, carinhosamente,  chamado pelos chilenos, será a partir de então, habitante de suas fantasias e de seus pesadelos, fazendo dele, pela segunda vez, um órfão. Seu pai, bêbado, morrera de um balaço; Pedro Aguirre, preconizando mudanças, morrera para que os pobres continuassem na terra porque são eles que devem gastar o sofrimento que existe no mundo.  Os doutores o mataram, diz a mãe para Ramón Neira. Ingenuamente, ele pensa nas injeções  que os doutores lhe aplicaram para provocar a morte. Pobre, como os outros pobres, acreditava que o presidente era bom, acreditava nas coisas importantes que ele havia jurado fazer. E, também, que a felicidade – a visão de Yolanda, tão bonita, quando a viu pela primeira vez no dia do enterro de Pedro Aguirre – era um presente do “velhinho negro”.

            Ramón Neira trabalha em cima do andaime, ao sol e ao vento, bebe para enfrentar os seus dias. Lúcido, ele sabe que é um cidadão sem direitos e sóbrio ou bêbado, ele precisa ter esperanças. Perto dele, a voz discordante da mãe, pequena, enrugada, sofrida. Para ela já não são as ilusões. Nem as da terra, nem as do céu. O “velhinho negro” morreu de pura maldade, diz. Os ricos vão diretamente para o céu e lá são recebidos com todas as honras.

            Porém o carpinteiro é um homem do Continente. Sem crenças o que será dele? E acredita no que lhe é dado perceber. O que não é muito. Diz para a sua mãe: - Era um homem bom, velha. Ela ficou olhando para ele com a cabeça levantada porque ele era muito mais alto  ela o enxergava mais alto; agora., que estava triste, parecia que tinha crescido. – Era um homem rico, filho!.

domingo, 10 de dezembro de 1989

Nos trilhos do trem

            Os trilhos do trem avançando terra a dentro trouxeram para Filisbino Nieto só motivos de sofrimento.

            Instalara-se em Sán José de las Cañas  para viver feliz com Pajita a mulher que escolhera. Mas, os gringos loiros  de olhos azuis, trazendo a estrada de ferro o obrigaram a mudar o rumo de sua vida. Porque, para os ingleses, era imprescindível colocar o teodolito, exatamente, onde estava a parede de seu rancho. E, então, a parede foi derrubada sob a proteção de dois soldados armados de metralhadoras.

            Enquanto isso, o povoado quase inteiro – os que moravam em casas de tijolo, ganhando mais; os que moravam em rancho ganhando menos – trabalhavam na  terraplanagem e comiam carne de cavalo e ervilha em lata que a Companhia punha à venda no seu armazém. Foi assim que Filisbino Nieto viu arruinado seu negócio de tradicional contrabandista.

            Trata-se dele, certamente, e trata-se  de Pajita e do inglês Stirling ou Estirlin  como  era chamado, a história. Formam um insólito triângulo amoroso que se faz e se desfaz sem causar demasiado sofrimento nesses surpreendentes personagens.

            Vagamente esboçados – Pajita tem a pele de canela e o sorriso bem de negra; Estirlin é loiro e só; Filisbino Nieto tem um rosto redondo como um queijo – sobretudo, eles esperam que algo aconteça para lhes mudar a vida. Definem-se por algum gesto, uma ou outra palavra e são parte de um universo em que pouco ou quase nada acontece: o gringo bebe seus tragos diante de uma janela que o deixa olhando longe; Filisbino toma chimarrão; Pajita se distrai comendo um prato de canjica.

            Isto acontece nas primeira páginas de Estado de gracia, um pequeno romance publicado no ano de 1983, em Montevidéu. Número 25 de “Lectores de Banda oriental”, uma coleção de obras cuja venda se destina, exclusivamente, a assinantes, é o segundo livro de Mario Delgado Aparaín. Setenta e cinco páginas de perfeição que desabrocha em cada pequeno episódio, em cada diálogo, no dinamismo de uma narrativa que não desdenha se deter em insignificantes detalhes.
            Mario Delgado Aparaín não abandona em Estado de gracia os principais temas de Literatura Latino-americana: o fantástico, o lúdico, o riso, a  morte, o compromisso com o homem. A partir deles é que irá realizar a aventura de uma escrita de extraordinária criatividade – sem precedentes no Uruguai, diz o crítico Alcides Abella – que se constitui, sem dúvida, uma expressão do Continente.