domingo, 10 de setembro de 1989

Um rio imita o Reno cinqüenta anos depois

            Viana Moog nasceu em São Leopoldo, Rio Grande do Sul, às margens do rio dos Sinos, no ano de1906. Iniciou suas atividades jornalísticas no Jornal da Noite, de Porto Alegre, depois da Revolução de 30 mas, sua vida literária começou, verdadeiramente, em 1943, no período em que viveu no norte do país – Amazonas e Piauí – penalizado por ter sido um dos participantes da Revolução Constitucionalista.

            Na Amazônia, escreveu seus dois primeiros livros de ensaio: Heróis da decadência em que reflete sobre   o humor de Petrônio, Cervantes e Machado de Assis e o Ciclo do ouro negro em que interpreta a realidade da Amazônia.

            Quando, em 1934, a anistia, concedida pelo Congresso lhe permite voltar para Porto Alegre, passou a dirigir a Folha da Tarde e de seus textos satíricos sobre a situação político- social do país resultou  o livro  Novas cartas persas. Das obras que se seguiram, destacam-se Tóia, romance cuja ação se passa no México onde Viana Moog viveu mais de dez anos,como presidente da Comissão de Ação Cultura da OEA , Bandeirantes e Pioneiros ( traduzido para o inglês e para o francês) e Um rio imita o Reno.

             O fato de ter escrito um excelente ensaio, Eça de Queirós e o século XIX, induziu, talvez, a alguns críticos o considerarem um discípulo do romancista português. No dizer de Antonio Carlos Villaça, o autor gaúcho torna a fazer do romance uma narrativa a partir da observação da realidade objetivamente vista. Na verdade, não há dúvida que, ao se deter na realidade exterior em Um rio imita o Reno, Viana Moog pouco inventa ao descrever a pequena cidade de Blumental, seus habitantes e a natureza que a circunda. Rotulado de “romance social”, trata-se de uma obra que poderia, também, ser chamada de “romance de idéias”. Porque a história de amor entre o amazonense Geraldo Torres e Lore Wolff, descendente de alemães parece apenas ser motivo para falar de um Brasil onde os imigrantes vieram em busca do futuro e mostrar alguns momentos de sua aculturação.

            Um rio imita o Reno é construído em quatro partes, cujos títulos são as estações do ano. Inicia-se no verão, quando chega à cidade para construir a hidráulica, o engenheiro de pele bronzeada. Da janela do hotel, ele olha a cidade: Blumental dava-lhe a impressão de uma cidade do Reno extraviada em terra americana. Desde o gótico da igreja, até a dura austeridade das fachadas, tudo nela, à exceção do jardim era grave, rígido, tedesco.

            Mal chega, o engenheiro caboclo, como o chama um outro personagem, sente-se atraído pela moça loira: bugre enamorada da deusa branca. A emoção que, por sua vez, provoca em Lore nada significa diante  dos preconceitos da família. Para eles, Geraldo Torres faz parte dos outros, os de raça inferior como diz Frau Marta, a mãe;  os que, fracos, morrem à primeira gripe, como afirma Karl, o irmão.

            Embora a tensão  do romance esteja nesse preconceito racial, o que acaba ficando em primeiro plano são as idéias que fluem das discussões, das opiniões, dos monólogos que expressam   o significado do Brasil para os brasileiros, tanto para os descendentes de europeus    que ainda sentem o Velho Continente e procuram viver como se ali estivessem, como para os que usam sobrenomes portugueses. Tanto no que se refere à aparência física, como no que se refere à visão de mundo, eles são o reverso da moeda.

            Os extremos podem significar uma convivência pacifica entre loiros, morenos, caboclos, mulatos, cafusos, negros, alemães, polacos, teuto-brasileiros, luso-brasileiros ou um repúdio baseado na cor da pele. Ou,  ainda, um desejo de riqueza e progresso, materializado na instalação de indústrias que se opõe ao trabalho artesanal – confecção de redes de tucum ou de objetos de cerâmica – oferecido aos visitantes porque um eventual lucro, originado da venda desses objetos, não faz falta.

            No  outono, se instala a crise que irá afastar o engenheiro; no inverno, a sua partida. Assim como a politicagem não deixará que a hidráulica seja concluída, assim os preconceitos irão impedir a união dos namorados.

            Acreditando na unidade nacional, Viana Moog faz com que um raio de sol penetre no velho casarão dos Wollf e, na primavera, após a chuva, a velha frau Marta não mais se oponha às brincadeiras do neto loiro com os moleques da rua.

            Quando, em 1930, Um rio imita o Reno foi publicado, Viana Moog dizia, pela boca de Geraldo Torres, que os pardais chegam em bando e impedem o canto dos outros pássaros; que eles grasnam em coro para que não os humilhe a voz dos pássaros de canto. Passados cinqüenta anos, as vozes dos preconceitos e do racismo não se calaram. Resulta daí, certamente, a oportunidade desse romance e de sua reedição pela José Olympio, em 1987.

            Morto recentemente, Viana Moog certamente não ignorou que os pardais estão voltando.

domingo, 3 de setembro de 1989

Já foi dito e legislado



            O sol e o pampeiro lhe tingiram a pele. Falava baixo e pausado e tinha os olhos azuis. José Artigas, um dos libertadores da América.

            Capitán luminoso, jinete del escalofrio, caudillo del rumbo, centauro de la polvoreda o chamou Pablo Neruda no seu Canto general. Nos pampas do Uruguai, conforme testemunho do inglês Robertson, sentado numa caveira de boi, perto do fogo, vai ditando as cartas a seus dois secretários. Pelo chão, espalhadas, as muitas que lhe chegavam da província inteira.

            Pobremente vestido com um velho poncho, ao mesmo tempo, ele bebia genebra, fumava, conversava e despachava todos os assuntos que lhe caíam nas mãos.

            E foi em setembro de 1815 que José Artigas decretou os regulamentos que dispunham sobre as terras, sobre os direitos alfandegários e sobre o comércio de seu país. Que as terras fossem repartidas entre os que, laboriosos, não as possuíam; que os livros não pagassem impostos de importação; que o comércio e a indústria estivessem nas mãos dos uruguaios.

            Claras e límpidas resoluções que assegurariam, no seu entender, o trabalho e o desenvolvimento voltados para um grande mercado comum regional. No sistema que engendrou, a nação seria formada pelos que nela nascessem.

            Por isso, os forâneos de outros hemisférios logo lhe fizeram cerco e José Artigas, el capitán luminoso, terminou seus dias, solitário, num exílio que durou  trinta anos.