sábado, 16 de abril de 1988

O “gaúcho novo” de Serafin J. García

            Em 1936, Serafin J.García, nascido em Treinta  y Três, cidade uruguaia próxima do Brasil, publicava Tacuruses. Depois, livros de contos, de poemas, antologias da Literatura Nativista do Uruguai se seguiram. Porém, foi Tacuruses que mereceu mais de dez edições no seu país e extrapolou  fronteiras para fazer admiradores no Rio Grande do Sul como bem o registra, no dia 26 de março de 1974, quando ainda existia o velho Correio do Povo, o cronista Sérgio da Costa Franco.

            Os poemas de Tacuruses tratam da querência, do botequim, do amor, das brigas, das taperas. Tem como cenário, o campo. E como expressão, a linguagem gauchesca. Um, entre tantos livros de poemas sobre o gaúcho. Mas, um livro que se afasta da trilha conhecida, ao enunciar os novos momentos vividos por aquele que foi o dono dos pampas e, progressivamente, vai se transformando em agricultor ou vai sendo marginalizado de seu trabalho campeiro para dar lugar aos que semeiam. E’o “gaúcho novo”, dizem os críticos.  O seu protótipo está retratado no poema “Orejano” (orelhano), termo que no tempo da dominação ibérica designava os animais que não haviam recebido a marca da Coroa, dona das terras e de  suas riquezas e que por extensão passou a significar, também “livre”, “sem dono”.

            O gaúcho que se expressa no poema de Serafin J.García é aquele que sobreviveu à limitação dos horizontes pelas cercas de arame farpado, submetendo-se à leis da civilização, da Igreja, dos costumes. Deixou de ser aquele gaúcho nômade que roubava a mulher, levando-a na garupa do cavalo para abandoná-la quando o interesse fora perdido, ignorando  o filho que, por ventura, dessa união viesse a nascer; ou, aquele que seguia,  sem muito entender os porquês, o caudilho eventual.

            O gaúcho de “ Orejano” constituiu família e se fixou na terra. Porém, o fez a sua maneira, negando-se a passar por um juiz que lhe oficializasse a união ou pela igreja que lhe batizasse  os filhos; negando-se à submissão e ao silêncio; já não o convencem com quatro mentiras / os graudões que chegam da cidade / para elogiar divisas já desmerecidas / e fazer promessas que nunca cumpriram. Essa recusa  dos assim chamados valores tradicionais, presente em cada poema de Tacuruses, verdadeiro enunciado de protesto contra as leis que regem o viver social, irá  se fortalecer em Burbujas, livro de contos, publicado quatro anos depois. O campo continua sendo o espaço. E o assunto, o contrabando, o drama da prostituição ou da criança abandonada, a situação passiva da mulher e a transformação do homem das lides do campo para o homem que planta.

            Nos poemas e nos contos se retrata um mundo dividido: o poder econômico dos estancieiros servidos pelo poder público; a força de trabalho exercida pelos peões e pela criadagem quase igualados na pobreza aos marginais ( a prostituta, o ladrão de ovelhas, o contrabandista). Não mais  um espaço aberto e sem dono, campos verdes a se perderem no infinito e o gaúcho altivo e brigão, dominando a paisagem. A terra dividira-se em propriedades e nela só havia lugar par aquele que aceitasse as novas regras.

            O chamado “gaúcho novo” testemunha a pobreza, a exploração de que são vítimas, sobretudo, as mulheres e as crianças, os homens cujo trabalho não mais interessa aos meios de produção. E a seus olhos abertos não mais se escondem  as “bicheiras” do Sistema;  sua voz se ergue para cantar verdades. Que se perdem no vazio.

sábado, 9 de abril de 1988

Um poema para os negros

            E’comumente aceito entre os teóricos da Literatura que, ao se iniciar o século XX, havia um cansaço europeu em relação ao já visto e ao já conhecido, cansaço este que levou à busca de novos e estimulantes motivos de inspiração.

            Os trabalhos  de Leo Frobenius sobre os fetiches africanos e a visita de Louis Mitchell à Europa, levando o gosto pelo jazz que se havia apoderado dos norte-americanos,  oferecerão um tema até então ignorado e que irá se concretizar, quando, em 1921, Blaise Cendrars publica a sua famosa Antologia Negra.

            O interesse pelo negro, instalado na Europa e nos Estados Unidos chega, então, à América Hispânica.  Artistas e escritores passam a ter olhos para o que, na verdade, há muito existia ao seu redor e recriaram uma poesia que vinha sendo cultivada, esporadicamente, desde o período da escravidão com um tratamento americano e original,

            Espalhado pelo Continente americano essas novas expressões poéticas, ora  se aproximam do negro atraído pelo seu exotismo, ora  se detém no seu mundo interior misterioso e dramático. E, a grosso modo,farão surgir três vertentes bem definidas: a manifestação poética de tipo erudito cuja linguagem culta descreve o negro como elemento pitoresco; outra, de caráter popular  e folclórico que usa a expressão dos negros na busca de efeitos musicais e rítmicos ; e uma terceira, de nítida intenção política, preocupada com o perfil social do negro.

            Em Cuba e em Puerto Rico principalmente, apareceram, criados por grandes poetas, poemas que ultrapassaram o modismo e permaneceram como excelentes textos literários.O que aconteceu em quase todos os países da América -  inseridos numa ou noutra tendência - mesmo naqueles  onde a presença do negro não é estatisticamente representativa, houve quem poetasse por ele ou nele se inspirasse.

            Assim, no Chile, onde se pode considerar nula a presença de indivíduos de raça negra, a Literatura pode se orgulhar de possuir um dos mais belos poemas de temática negra: “Bailando com los negros”, que faz parte de Canción de Gesta (La Habana, Imprenta Nacional de Cuba, 1960) e, também, da antologia Poesia negra de América (México, Ediciones Era, 1976).     Sem o convívio com os negros, e em  conseqüência, sem fonte próxima de inspiração, foi obedecendo a sua visão de mundo, voltada para o social, que esse poema de Pablo Neruda denuncia os preconceitos e maus tratos de que sempre foram vítimas os negros do Continente americano . O Poeta esteve em Cuba em 1942 e, talvez, “Bailando com los negros” seja um poema circunstancial:  conhecer de perto também as injustiças com o homem negro o incitaram a com  ele se irmanar . Curiosamente, no poema, irmanar-se na dança e não na preconização da luta que iria advir anos depois com a Revolução cubana. Um irmanar-se que sempre foi  expressão do poeta chileno em relação às injustiças e misérias das quais foi ao longo de toda a sua vida um portentoso adversário.

            Na década de 50,  Pablo Neruda escreveria: Porque onde não tenha voz um homem / ali, minha voz / Onde os negros receberam pauladas / eu não posso estar morto.



Dançando com os negros

                                          Negros do Continente, ao Novo Mundo

                                          destes o sal que lhe faltava:

                                          sem negros não respiram os tambores

                                          sem negros  os vilões não tocam.

                                          Imóvel era   nossa verde América

                                          até que se moveu como palmeira

                                          quando nasceu de um casal de negros

                                          o baile de seu sangue e sua graça/

                                          E depois de sofrer tantas misérias

                                          e de cortar até morrer, a cana

                                          e de cuidar de porcos lá no mato

                                          e de carregar as pedras mais pesadas

                                          e de lavar pirâmides de roupa

                                         e de subir carregados as escadas

                                          e de parir sozinha no caminho

                                          e de não ter prato e nem colher

                                          e de receber mais pauladas, que salário

                                          e de sofrer a venda da irmã

                                          e de moer farinha todo um século

                                          e de correr um dia por semana

                                          e de correr como um cavalo, sempre

                                          repartindo grandes caixões de alpargatas

                                          manejando a vassoura e o serrote,

                                          e cavando caminhos e montanhas,

                                          deitar-se cansados, com a morte,

                                          e viver outra vez cada manhã

                                          cantando como ninguém cantaria

                                          cantando com o corpo e com a alma.

                                          Coração meu, para dizer isto

                                          parte-me a vida e a palavra

                                          e  não posso continuar porque prefiro

                                          ir embora com as palmeiras africanas

                                          madrinhas de música terrestre

                                          que agora me chama da janela:

                                          e me vou dançar pelos caminhos

                                          com meus irmãos negros de La Habana.

                                                                 (Tradução de Cecília Zokner)