sexta-feira, 24 de abril de 1987

O Chamado


Um dos cavalos, aquele, precisamente, que depois lhe serviria para fugir, tinha se plantado diante de sua janela e a lâmpada lhe iluminava o focinho loiro, sensual e aristocrát6ico        aristocrático, quase humano  batia com ele nos vidros para chamá-lo e como o cavalo olhava para ele, não para ele mas para seu trabalho, seu destino, as ferramentas humildes da profissão, a mesa, a cadeira, a sovela, a lima, ele começou a rir. Eloy, Carlos Droguett.



            Isto é esplêndido, é preciso publicá-lo, dizia o padre Escudero para Carlos Droguett ao telefone  depois de ter lido os manuscritos de Eloy. Uma exclamação que jamais poderia ter sido prevista pelo menino que na escola de padres apresentava, semanalmente, a sua composição para o professor. Composição que seria juntada do chão onde o professor a jogava ao invés de entregá-la, como fazia para os demais alunos. O professor era o padre Escudero. Entre esse relacionamento difícil entre aluno e professor e a amizade que mais tarde iria se estabelecer entre os dois, a partir de um encontro casual na rua, já existiam as inúmeras crônicas e contos publicados, a cada semana, em La hora, jornal de Santiago do Chile que hoje não existe mais.

            No entanto, apesar de todo o prestígio de que gozava o padre Escudero nos meios editoriais da época, Eloy não foi publicado no Chile. Algum tempo se passou e, num domingo, Carlos Droguett vai procurar seu antigo professor em busca de um conselho: Eloy deveria estar entre as obras que iriam concorrer ao concurso anual da Seix Barral de Barcelona? Na biblioteca “enorme, bela, de móveis de caoba inglesa, uma biblioteca com corredores na parte superior aos quais se ascendia por uma escada em caracol, Carlos Droguett escutou uma resposta afirmativa. Sim, Eloy deveria ser mandado para Barcelona.

            O romance foi enviado, então, inédito no Chile e, entre alguns jurados, que lhe desejavam o primeiro lugar, foi defendido até o último momento. Obteve o segundo e a publicação imediata. Seguiram-se as traduções. Primeiro, para o italiano  logo para o alemão. Mais tarde para o dinamarquês, o polonês e o tcheco. Em francês apareceu  pela Maspero, em 1977, e, em português pela Codecri em 1982.

            Eloy foi escrito como um conto, resultado da emoção de Carlos Droguett ao saber da morte do bandoleiro chileno nos campos vizinhos de Santiago numa madrugada de 1941. Emoção guardada por muitos anos e que, finalmente, foi expressa, de uma só vez, em uma semana. Escreveu o que sabia da morte de Eloy pelos documentos oficiais e o que imaginou terem sido as suas últimas horas de vida: duas ou três horas nas quais Eloy sofre a aproximação do cerco que irá culminar na sua morte. As mesmas horas em que sofrerá, também, o assédio das lembranças da vida de antes: de sua mulher, das outras que possuiu, dos perigos enfrentados, das andanças de fugitivo. E,  repetidas vezes, impressionante, o momento de uma noite de chuva em  que abandonou  seu ofício  para seguir o seu novo destino, o de marginal perseguido. Trabalhava no seu banquinho de sapateiro do qual não teria se afastado  se o cavalo não tivesse se detido da porta. Esse cavalo veio para me buscar ele acredita. No entanto, antes de vê-lo branco, lustroso e belo o seu olhar foi para a espingarda, uma espingarda que, ainda, não tinha matado ninguém. O cavalo o salpicou de chuva e de baba, bateu com os belfos no vidro para que se apressasse, empurrou a janela  e relinchou com suavidade. Fez com que adivinhasse que devia partir. E ele atendeu ao chamado, abandonou seus honestos instrumentos de trabalho, a sua vida de artesão pobre para penetrar no espaço daqueles que não tem lei. Morreu crivado de balas. Era madrugada e fazia frio.

            Personagem de ficção, também foi crivado de balas e morreu com o rosto colado na terra, rodeado pelas botas que o perseguiam. E conquistou um outro espaço  de onde é mais difícil desaparecer, situado que está na emoção provocada pelo texto de Carlos Droguett: um chamado para se debruçar sobre o homem que, esgotado pelo trabalho e pelas injustiças escolhe a marginalidade. Aquela que, pelo menos, lhe concede uma ilusória liberdade, um ilusório poder de decisão. Isto é, um chamado para entender que a grande maioria dos homens do Continente americano está enredada em teias de opressão e de miséria que não lhe permitem discernir quais os verdadeiros caminhos de libertação.