Um dos cavalos, aquele,
precisamente, que depois lhe serviria para fugir, tinha se plantado diante de
sua janela e a lâmpada lhe iluminava o focinho loiro, sensual e aristocrát6ico aristocrático, quase humano batia com ele nos vidros para chamá-lo e como
o cavalo olhava para ele, não para ele mas para seu trabalho, seu destino, as
ferramentas humildes da profissão, a mesa, a cadeira, a sovela, a lima, ele
começou a rir. Eloy, Carlos Droguett.
Isto é esplêndido, é
preciso publicá-lo, dizia o padre Escudero para Carlos Droguett ao
telefone depois de ter lido os
manuscritos de Eloy. Uma exclamação
que jamais poderia ter sido prevista pelo menino que na escola de padres
apresentava, semanalmente, a sua composição para o professor. Composição que
seria juntada do chão onde o professor a jogava ao invés de entregá-la, como
fazia para os demais alunos. O professor era o padre Escudero. Entre esse relacionamento
difícil entre aluno e professor e a amizade que mais tarde iria se estabelecer
entre os dois, a partir de um encontro casual na rua, já existiam as inúmeras
crônicas e contos publicados, a cada semana, em La hora, jornal de Santiago do Chile que hoje não existe mais.
No
entanto, apesar de todo o prestígio de que gozava o padre Escudero nos meios
editoriais da época, Eloy não foi
publicado no Chile. Algum tempo se passou e, num domingo, Carlos Droguett vai
procurar seu antigo professor em busca de um conselho: Eloy deveria estar entre
as obras que iriam concorrer ao concurso anual da Seix Barral de Barcelona? Na
biblioteca “enorme, bela, de móveis de caoba inglesa, uma
biblioteca com corredores na parte superior aos quais se ascendia por uma
escada em caracol, Carlos Droguett escutou uma resposta afirmativa. Sim,
Eloy deveria ser mandado para Barcelona.
O
romance foi enviado, então, inédito no Chile e, entre alguns jurados, que lhe
desejavam o primeiro lugar, foi defendido até o último momento. Obteve o
segundo e a publicação imediata. Seguiram-se as traduções. Primeiro, para o
italiano logo para o alemão. Mais tarde
para o dinamarquês, o polonês e o tcheco. Em francês apareceu pela Maspero, em 1977, e, em português pela
Codecri em 1982.
Eloy foi escrito como um conto,
resultado da emoção de Carlos Droguett ao saber da morte do bandoleiro chileno
nos campos vizinhos de Santiago numa madrugada de 1941. Emoção guardada por
muitos anos e que, finalmente, foi expressa, de uma só vez, em uma semana. Escreveu
o que sabia da morte de Eloy pelos documentos oficiais e o que imaginou terem
sido as suas últimas horas de vida: duas ou três horas nas quais Eloy sofre a
aproximação do cerco que irá culminar na sua morte. As mesmas horas em que
sofrerá, também, o assédio das lembranças da vida de antes: de sua mulher, das
outras que possuiu, dos perigos enfrentados, das andanças de fugitivo. E, repetidas vezes, impressionante, o momento de
uma noite de chuva em que abandonou seu ofício
para seguir o seu novo destino, o de marginal perseguido. Trabalhava no
seu banquinho de sapateiro do qual não teria se afastado se o cavalo não tivesse se detido da porta. Esse cavalo veio para me buscar ele acredita. No entanto, antes
de vê-lo branco, lustroso e belo o
seu olhar foi para a espingarda, uma espingarda que, ainda, não tinha matado
ninguém. O cavalo o salpicou de chuva e de baba, bateu com os belfos no vidro
para que se apressasse, empurrou a janela
e relinchou com suavidade. Fez com que adivinhasse que devia partir. E
ele atendeu ao chamado, abandonou seus honestos instrumentos de trabalho, a sua
vida de artesão pobre para penetrar no espaço daqueles que não tem lei. Morreu
crivado de balas. Era madrugada e fazia frio.
Personagem
de ficção, também foi crivado de balas e morreu com o rosto colado na terra,
rodeado pelas botas que o perseguiam. E conquistou um outro espaço de onde é mais difícil desaparecer, situado
que está na emoção provocada pelo texto de Carlos Droguett: um chamado para se
debruçar sobre o homem que, esgotado pelo trabalho e pelas injustiças escolhe a
marginalidade. Aquela que, pelo menos, lhe concede uma ilusória liberdade, um
ilusório poder de decisão. Isto é, um chamado para entender que a grande
maioria dos homens do Continente americano está enredada em teias de opressão e
de miséria que não lhe permitem discernir quais os verdadeiros caminhos de
libertação.
