sexta-feira, 21 de novembro de 1986

Estrela luminosa: Julia de Burgos

            A maior parte da população é mestiça, descendendo de negos e de espanhóis em Puerto Rico. Depois de pertencer quatrocentos anos à Espanha, em 1898, a Ilha foi cedida aos Estados Unidos do qual passou a ser, desde 1952, um estado Associado. Um status que lhe permite ver assimilados pelo rico país do Norte os seus muitos desempregados. Além dos empregos, tão necessários, os portoriquenhos recebem dos cidadãos norte-americanos, a alcunha de “cucarachas” (baratas) porque são escuros, sujos e prolíferos. Um termo que, segundo Henfil no seu livro Diário de um cucaracha   passou, por extensão, a designar,  também, a todos os demais latino-americanos. Então, é de algum modo surpreendente  ter existido alguém  que foi poupado desse rótulo: Julia de Burgos, nascida em 1914, um caso raro e efêmero de poeta. 
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            Como soe acontecer  na América Latina, onde a vontade de um poucos prevalece e faz com que o Continente se empobreça na perda de seus melhores filhos, Puerto Rico expulsou Julia de Burgos. Extirpada de sua terra, ela, a semente de tantos bons frutos, morre com trinta e nove anos. Em 1938, havia publicado Poemas en veinte surcos e no ano seguinte, Canción de la verdad sencilla. Quinze anos depois de sua morte, foi publicado El mar y tu.
 
            Em seus versos se misturam o lirismo amoroso com o patriótico, o protesto social com o político. Voz feminina que não se enclausura no detalhe bizarro, no onamatopáico, na temática do homem preto injustiçado pela escravidão ou cercado pelas suas seqüelas quando livre, impedido de possuir, de usufruir tudo o que os que possuem julgam apenas para si mesmo imprescindível. São poemas da negritude que extrapolam o modismo que marcou certa poesia latino-americana entre os anos 20 e 40. Poemas que explodem em infinitos pontos de luz . Um d eles que, criteriosamente, poderíamos chamar antológico, é o seu poema “ Ay ay ay de la grifa negra”. Inicia-se, inocente, a voz feminina a dizer de sua cor, de seus lábios, de seu nariz, de seus cabelos: mi estatua es toda negra. Simplesmente palavras que esboçam uma mulher negra, nada mais. Não necessariamente bela, nem necessariamente infeliz. Tampouco exótica ou perigosa ou fascinante. Apenas estátua negra, pedaço de noite onde relampejam os dentes brancos.  Num contar de histórias de outros tempos, principia a terceira estrofe: Dicen que mi abuelo fue el esclavo / por quien el amo dio treinta monedas. Para o cidadão de qualquer país escravagista (no passado ou no presente, pouco importa) onde a História Pátria não faz segredos destas compras e vendas, trata-se de uma leitura anodina, talvez prazerosa, que se prolonga ainda nos dois versos seguintes. Porém, logo, expressão de um sentir individual, afetivamente ligada a um antepassado,  se amplia, se quer parte de um espaço  chamado pátria: Si hubiera sido el amo, sería mi vergüenza: / que en los hombres, igual que en las naciones, / si el ser siervo es no tener derechos, / el ser el amo es no tener conciencia. Nesta passagem, em que resultam paralelos os destinos dos homens e das nações, como em tantos outros textos latino-americanos, há aquele claro anseio de justiça e de integridade. E, também, esperança, embora hesitante, de um novo povo para a América: raça negra fundindo-se em água clara, raça branca ensombreando-se na raça negra. Anseios que, um meio século depois, se estão concretizando-se nessas nuances, frutos da mestiçagem latino-americana,  nascidas espontaneamente ao sul to Rio Bravo.  Onde a América corre a ser trigueña: / a ser la del futuro: / Fraternidad de América.