A
maior parte da população é mestiça, descendendo de negos e de espanhóis em
Puerto Rico. Depois de pertencer quatrocentos anos à Espanha, em 1898, a Ilha
foi cedida aos Estados Unidos do qual passou a ser,
desde 1952, um estado Associado. Um status que lhe permite ver assimilados pelo
rico país do Norte os seus muitos desempregados. Além dos empregos, tão
necessários, os portoriquenhos recebem dos cidadãos norte-americanos, a alcunha
de “cucarachas” (baratas) porque são escuros, sujos e prolíferos. Um termo que, segundo Henfil no seu livro Diário de um cucaracha passou, por extensão, a designar, também, a todos os demais
latino-americanos. Então, é de algum modo surpreendente ter existido alguém que foi poupado desse rótulo: Julia de Burgos, nascida em 1914, um caso raro e efêmero de poeta.
Como
soe acontecer na América Latina, onde a
vontade de um poucos prevalece e faz com que o Continente se empobreça na perda
de seus melhores filhos, Puerto Rico expulsou Julia de Burgos. Extirpada de sua
terra, ela, a semente de tantos bons frutos, morre com trinta e nove anos. Em
1938, havia publicado Poemas en veinte
surcos e no ano seguinte, Canción de
la verdad sencilla. Quinze anos
depois de sua morte, foi publicado El
mar y tu.
Em
seus versos se misturam o lirismo amoroso com o patriótico, o protesto social
com o político. Voz feminina que não se enclausura no detalhe bizarro, no
onamatopáico, na temática do homem preto injustiçado pela escravidão ou cercado
pelas suas seqüelas quando livre, impedido de possuir, de usufruir tudo o que
os que possuem julgam apenas para si mesmo imprescindível. São poemas da
negritude que extrapolam o modismo que marcou certa poesia latino-americana
entre os anos 20 e 40. Poemas que explodem em infinitos pontos de luz . Um d
eles que, criteriosamente, poderíamos chamar antológico, é o seu poema “ Ay ay
ay de la grifa negra”. Inicia-se, inocente, a voz feminina a dizer de sua cor,
de seus lábios, de seu nariz, de seus cabelos: mi estatua es toda negra.
Simplesmente palavras que esboçam uma mulher negra, nada mais. Não
necessariamente bela, nem necessariamente infeliz. Tampouco exótica ou perigosa
ou fascinante. Apenas estátua negra, pedaço
de noite onde relampejam os dentes brancos.
Num contar de histórias de
outros tempos, principia a terceira estrofe:
Dicen que mi abuelo fue el esclavo / por quien el amo dio treinta monedas. Para o cidadão
de qualquer país escravagista (no passado ou no presente, pouco importa) onde a
História Pátria não faz segredos destas compras e vendas, trata-se de uma
leitura anodina, talvez prazerosa, que se prolonga ainda nos dois versos seguintes.
Porém, logo, expressão de um sentir individual, afetivamente ligada a um
antepassado, se amplia, se quer parte de
um espaço chamado pátria: Si hubiera sido el amo, sería mi vergüenza:
/ que en los hombres, igual que en las naciones, / si el ser siervo es no tener
derechos, / el ser el amo es no tener conciencia.
Nesta passagem, em que resultam paralelos os destinos dos homens e das nações,
como em tantos outros textos latino-americanos, há aquele claro anseio de
justiça e de integridade. E, também, esperança, embora hesitante, de um novo
povo para a América: raça negra
fundindo-se em água clara, raça
branca ensombreando-se na raça negra. Anseios que, um meio século depois,
se estão concretizando-se nessas nuances, frutos da mestiçagem latino-americana, nascidas espontaneamente ao sul to Rio
Bravo. Onde a América corre a ser trigueña: / a ser la del futuro:
/ Fraternidad de América. 