Já
estava correndo o mundo hispânico, editado pela Bruguera de Barcelona e El amor en los tiempos del Cólera quando foi publicado
no Brasil na tradução de Antonio Callado.
Na
capa azul, tanto na edição da Bruguera como na da Record, incrusta-se pequeno quadro
de uma paisagem tropical e
vegetação densa. Em primeiro plano, iluminado, um cupido estira, sorrindo, a
corda de seu arco, pronto para lançar a flecha na direção paralela à rota do
pequeno navio que, no segundo plano, navega seguido de espuma e de abundante
fumaça. Fumaça que o vento conduz para a esquerda da gravura, assim como conduz
a bandeira amarela que aparece, então desfraldada. E’a bandeira da cólera,
interditando o barco, afastando-o da margem. A bordo, Fermina Daza e Florentino
Ariza, isolados para o prolongamento da vida que se atribuíram ao se conceder,
finalmente, o amor.
Digamos
que este último romance de García Márquez seja, principalmente, um livro sobre
o amor. Também poderia ser um livro sobre amores se eles não se desvanecessem
diante do amor maior que nasceu de uma visão, cresceu de esperanças,
fortificou-se de ausências e enfraqueceu para renascer, definitivo.
Tinha treze anos Fermina Daza quando emoldurada pela janela, foi entrevista por aquele que, dominado pelo olhar casual que recebeu, iria segui-la ao longo da vida. Caminhos paralelos, cruzados, interditados num tempo minuciosamente registrado por Florentino Ariza que, então, após esses cinqüenta e três anos, sete meses e onze dias com suas noites, pode, por fim, acreditar que a viagem fluvial e amorosa não se limitaria a ser somente o desejo realizado, mas o início de algo que sempre desejou eterno, imenso, para a vida inteira.
É o
encanto da história de amor num relato prenhe de acontecimentos. Um narrador
convencional que, por vezes, se deixa surpreender por um nós. Um narrador que
assume, como seu, o mundo descrito, denunciando-se em algo de seus personagens. Uma narrativa
conturbada, de meandros e de aspirais que se desenovelam para mostrar-se sem
segredos. Alguma vez uma situação imprevista, mudando a direção da narrativa;
outra, um vagar, lembrando Proust;
ainda, um detalhe a remeter a textos já
conhecidos. Ao conto “ El amor más allá
de la muerte”, por exemplo.
Um mimético do real
latino-americano, criando um mundo de maravilhas por meio de achados estilísticos
praticamente ancorados no uso sapientíssimo do
adjetivo.
Nas costas do caribe, a cidade de Fermina Daza e de Florentino Ariza é, como tantas vezes acontece na América, um misto de fragância de jasmins e de pestilência. Cidade dividida em castas – trabalhadores mulato, sobrenomes sonoros – onde uma parte da população chafurda na lama e a outra imita a Europa, usando casaco de pele na canícula, obedecendo a mesma etiqueta do velho mundo nas noites dos espetáculos líricos. Costumes e ritos, anotados por um observador crítico e mordaz a fazer da leitura de Amor em los tiempos del cólera, caminhos de descobertas abrangentes e multifacetadas,trazendo no seu bojo um universo colombiano onde se podem mirar os outros universos do Continente. No demais como sempre, García Márquez.