O
Continente americano, espaço de crueldades, ilusões, magias. Na sua imensidão,
algumas ilhas de trégua, de esperanças, interregnos do terror. Nelas, delas
emergem fontes. Matizes, formas, vozes, textos antes sufocados. Vivências do
absurdo, do sangrento. Renovados na escrita procurando uma compreensão do
incompreensível, procurando um desabafo do irremediável: textos depoimentos.
Não menos fores, profundos, cruéis, igualmente refazendo o que foi como se
imaginado tivesse sido, os textos de ficção.
Homem de um Continente que precisa
se fazer, se construir, viver e que aproveita momentos de luz para consegui-lo.
Seja esse homem Gerardo Mario Goloboff, seja esse menino narrador que atravessam
distâncias e sofrimentos para acreditar.
Criador de palomas é a história de um
aprendizado. Aprendizado do amor, da ternura, da dor e da perda. Pedaços de
vida registrados com a aguda precisão de um conhecedor da alma humana. Mas,
sobretudo, alma adolescente desfazendo-se em silêncios.
O
contar se apóia em fatos acontecidos no passado a um menino de nove, mais tarde
de doze anos: uma festa de aniversário,
um almoço de domingo, o incêndio na casa de móveis, um banquete de casamento, a
compra de carne no matadouro, a viagem a French e a Cambaceres para vender
roupas, a visita ao sonhador de Smith. Costumes e gente, algo do país que se
define nas sensações, cheiro das acácias,
da terra molhada, dos gravetos de vinha no fogo, o gosto amargo do chimarrão,
do sal na carne.
Mas,
o que realmente importa são os pombos. O prazer profundo de tocá-los, o prazer
muito grande de amá-los. Imensas presenças femininas. Clara, Verana, Pampeana,
Blanca, Muñeca, Carla, a pequena pomba doente. E mais do que elas, presença
dominante, a morte. O menino encontra uma das pombas mortas, jogada no meio de uma pocinha de sangue ; outra, com um corte profundo no pescoço, as
patinhas cortadas, as asas retorcidas, as penas arrancadas. Ainda outra, com
um bala esburacando-lhe o peito. As demais caindo longe. Mortes que
acontecem de repente. E, que assim, de repente, são comunicadas ao leitor.
Então, o narrador cala. Um silêncio como que originado do pudor ou talvez do
acreditar desnecessário falar de uma dor já conhecida, experimentada por
aqueles que vivem no Continente massacrado e para os quais tampouco fosse
necessário explicar essas mortes. Sim, delas existem indícios, marcando o
texto, existem insinuações. Uns e outros diluídos, porém, na apresentação dos
momentos vividos pelo menino. Um viver que é feito de pequenas coisas –
brincadeiras, risos, convívios – no qual a violência do extermínio se constituiu
uma ruptura que, juntamente com o sangue e com o que é definido como esse torneio desproporcional entre a criatura
indefesa e os seus raptores se
insere no mundo ficcional depois – e isso o leitor não desconhece – de ter se
constituído um cotidiano para muitos.
Criador de palomas, claros escuros
alinhados com a maestria da
simplicidade. Ritmo de vida, marcado pela morte. Um dizer inocente, um “falar
sem que se note”. Como que seda e lã envolvendo o leitor. Que sem o sentir fica
ferido para sempre.