sexta-feira, 7 de março de 1986

A trégua

            O Continente americano, espaço de crueldades, ilusões, magias. Na sua imensidão, algumas ilhas de trégua, de esperanças, interregnos do terror. Nelas, delas emergem fontes. Matizes, formas, vozes, textos antes sufocados. Vivências do absurdo, do sangrento. Renovados na escrita procurando uma compreensão do incompreensível, procurando um desabafo do irremediável: textos depoimentos. Não menos fores, profundos, cruéis, igualmente refazendo o que foi como se imaginado tivesse sido, os textos de ficção.

            Da Argentina é Gerardo Mario Goloboff. Poeta, ensaísta, romancista. Criador de palomas  (Buenos Aires, Brughera, 1984) seu romance deste interregno em que vive o país. Interregno que se desejaria muito longo e muito eterno para que nele pudessem respirar e crescer os criadores e os pombos. Os pensadores, os trabalhadores, os artistas e a paz e a ternura. Qual é o latino-americano que não deseja a reconstrução de seu  país e de sua gente?Limpei as macegas que tinham crescido no quintal[...]Pus várias tábuas no galpão desconjuntado. Curei e reavivei a parreira e passei cal nas paredes. Assim começa a última página de Criador de palomas.  Um renascer muito simples, como se fosse natural. Uma fé muito grande e muito boa: Estendi, tremendo, o braço e a pomba se aproximou da minha mão.
            Homem de um Continente que precisa se fazer, se construir, viver e que aproveita momentos de luz para consegui-lo. Seja esse homem Gerardo Mario Goloboff, seja esse menino narrador que atravessam distâncias e sofrimentos para acreditar.
            Criador de palomas é a história de um aprendizado. Aprendizado do amor, da ternura, da dor e da perda. Pedaços de vida registrados com a aguda precisão de um conhecedor da alma humana. Mas, sobretudo, alma adolescente desfazendo-se em silêncios.
            O contar se apóia em fatos acontecidos no passado a um menino de nove, mais tarde de  doze anos: uma festa de aniversário, um almoço de domingo, o incêndio na casa de móveis, um banquete de casamento, a compra de carne no matadouro, a viagem a French e a Cambaceres para vender roupas, a visita ao sonhador de Smith. Costumes e gente, algo do país que se define nas sensações, cheiro das acácias, da terra molhada, dos gravetos de vinha no fogo, o gosto amargo do chimarrão, do sal na carne.
            Mas, o que realmente importa são os pombos. O prazer profundo de tocá-los, o prazer muito grande de amá-los. Imensas presenças femininas. Clara, Verana, Pampeana, Blanca, Muñeca, Carla, a pequena pomba doente. E mais do que elas, presença dominante, a morte. O menino encontra uma das pombas mortas, jogada no meio de uma pocinha de sangue ; outra, com um corte profundo no pescoço, as patinhas cortadas, as asas retorcidas, as penas arrancadas. Ainda outra, com um bala esburacando-lhe o peito. As demais caindo longe. Mortes que acontecem de repente. E, que assim, de repente, são comunicadas ao leitor. Então, o narrador cala. Um silêncio como que originado do pudor ou talvez do acreditar desnecessário falar de uma dor já conhecida, experimentada por aqueles que vivem no Continente massacrado e para os quais tampouco fosse necessário explicar essas mortes. Sim, delas existem indícios, marcando o texto, existem insinuações. Uns e outros diluídos, porém, na apresentação dos momentos vividos pelo menino. Um viver que é feito de pequenas coisas – brincadeiras, risos, convívios – no qual a violência do extermínio se constituiu uma ruptura que, juntamente com o sangue e com o que é definido como esse torneio desproporcional entre a criatura indefesa e os seus raptores  se insere no mundo ficcional depois – e isso o leitor não desconhece – de ter se constituído um cotidiano para muitos.
            Criador de palomas, claros escuros alinhados com a maestria  da simplicidade. Ritmo de vida, marcado pela morte. Um dizer inocente, um “falar sem que se note”. Como que seda e lã envolvendo o leitor. Que sem o sentir fica ferido para sempre.
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